Nas margens do rio Taedong - essa é a transliteração oficial em português, mas, para nossos ouvidos, a pronúncia em coreano mais se parece com "Dedong" - que atravessa Pyongyang e boa parte do norte da Península da Coreia, viajantes franceses, suecos, alemães, dinamarqueses, espanhóis (havia até um simpático príncipe da casa real de Espanha), italianos, noruegueses, ingleses, e... americanos, sem falar nos chineses e outros cidadãos asiáticos, inclusive japoneses, admiravam os belos monumentos erguidos, detalhada e minuciosamente, pelo povo coreano.
Alguns deles portavam "piercings" e cortes de cabelo pouco ortodoxos, mas eram tratados, sempre, com a mesma gentileza pelos coreanos.
Estávamos no país que a propaganda do establishment americano – repetida até a náusea pela mídia antinacional daqui – chama de país "fechado", "um dos mais fechados", ou, mesmo, "o mais fechado" (ou "isolado") do mundo.
Essa propaganda tem sua lógica própria - a lógica do lobo, um lobo especialmente sanguinário: bloqueiam um país, agridem-no de milhares de formas, tentam trucidá-lo (inclusive através de um genocídio - os EUA admitem que, entre 1950 e 1953, mataram 1 milhão e 500 mil coreanos ao norte do paralelo 38, o que significa, como na cínica frase de Lloyd George, primeiro-ministro inglês durante a I Guerra Mundial, que podemos, pelo menos, duplicar esse número), sabotam-no, boicotam-no, ocupam metade do seu território, passam por cima das eleições e dos acordos internacionais, instalam ogivas contra a parte livre.
Depois disso tudo, segundo a propaganda imperialista, o problema não está no agressor - mas no país agredido, que é "fechado" ou "isolado".
Nós, aqui no Brasil, já experimentamos, em algum grau, o que eles chamam de "abertura". Eles gostariam que a Coreia Popular estivesse "aberta" para suas agressões, isto é, que o povo coreano se submetesse a eles. Para isso, realmente, a Coreia Popular está fechada – mas não para os povos do mundo, incluindo o povo norte-americano. Foi o que pensei, enquanto observava os viajantes, não apenas em Pyongyang, mas em Panmunjon e várias outras localidades coreanas. Numa cooperativa agrícola, vi a mensagem, entusiasmada, deixada pelo príncipe espanhol.
A Coreia Popular, realmente, sabe se defender. Na agressão de 1950-1953, apesar da invasão e do bombardeio bárbaro, algo que nem os nazistas fizeram, as hordas norte-americanas, derrotadas, tiveram que recuar, deixando atrás de si 20 km em relação à linha de demarcação anterior. Por esta razão, o limite com a parte ocupada, a Coreia do Sul, localiza-se hoje além do famoso paralelo 38.
Se a Coreia não é ainda o país mais aberto no mundo (será que algum país precisa ser?), isso se deve, exclusivamente, às dificuldades impostas pelo imperialismo dos EUA, e seus satélites. Mas elas não são capazes de impedir o crescente afluxo de cidadãos de todas as partes do mundo.
Realmente, leitor, vale a pena.
A NOITE
Durante vários dias, eu e minha mulher, Sandra, percorremos aquele belo país. Lá pelas tantas, lembrei-me da entrevista de uma repórter, norte-americana de pais chineses (irmã de outra, presa por espionagem ao entrar ilegalmente na Coreia, e generosamente deportada para os EUA, após as desculpas de Clinton), no intragável programa da senhorita Oprah Winfrey - um exemplo escandaloso de como o establishment usa as etnias e parcelas da população que oprime, sobretudo os negros e as mulheres.
Dizia a repórter que os viajantes só se movem na Coreia Popular acompanhados e vigiados por um "guia", que mostra apenas o que o governo coreano quer que seja mostrado - ao que a insopitável Oprah acrescentou um "oooh...!", à guisa de comentário.
Com todos os obstáculos do idioma (minimizados, é verdade, pela educação e cultura dos coreanos – muitos conhecem as línguas ocidentais), eu e Sandra, quando nos deu na telha, andamos sozinhos por Pyongyang e outras localidades, sem que ninguém nos aporrinhasse, como se estivéssemos em São Paulo, Rio ou Fortaleza, com a diferença de que os passeios, inclusive noturnos, foram muito mais seguros. Na Coreia Popular, os assaltos não existem - e não é por falta de armas nas mãos da população.
Alguns podem achar que estamos descrevendo uma utopia – mas, não, leitores, é apenas a verdade, e isso não quer dizer que o país não enfrente dificuldades. Enfrenta, sim, e está fazendo o que pode para vencê-las. Mas a desumanização brutal que ainda impera em nossa sociedade – e, mais ainda, em outras ainda dominadas pelo imperialismo – não existe. Lá, o homem, ao contrário da frase do romano Plauto ("homo homini lupus"), tão citada por Hobbes e todos os reacionários que vieram depois, não é o lobo do homem – esse papel está, muito justamente, reservado para a casta financeira dominante nos EUA, que não é composta exatamente pelo que se entende por seres humanos, como mais uma vez se comprovou na Líbia.
IMPRESSÕES
Tive dúvidas de por onde seria melhor começar este relato. As pessoas escrevem para serem lidas, até mesmo os mais obtusos literatos que vivem pregando a "arte pela arte". Como dar ao leitor uma visão, a mais realista possível, de uma viagem? Depende da viagem. Por pouco não adotei Graciliano Ramos, e o extraordinário livro sobre sua visita aos países socialistas ("Viagem"), como modelo. Mas isso não seria bom, nem justo – os tempos são outros, os países e as experiências, também, e eu não sou Graciliano.
Talvez seja melhor iniciar pelo mais singelo – mas nem por isso menos significativo: pelo fim, pois o leitor não estava lá para descobrir a Coreia, como os viajantes fizeram, a cada passo.
Na véspera de nossa volta, uma jornalista da "Voz da Coreia", o maior jornal do país, sabendo que sou diretor de redação da Hora do Povo, perguntou-me sobre o que mais me impressionara nos dias que lá passamos.
Respondi: "o olhar das crianças".
Ela, muito jovem - portanto, sem conhecer pessoalmente as agruras da ocupação japonesa ou da agressão norte-americana -, não entendeu.
No entanto, o diplomata que nos servia de tradutor, com longos anos na África, Portugal, Espanha, e uma rápida estada no Brasil (conhecia a música popular brasileira, em amplitude, mais do que eu, e quase tanto quanto Sandra), entendeu na hora, assentindo. Mas deixou que a jornalista continuasse, sem fazer comentários.
"Mas o que você viu no olhar das nossas crianças?"
Expliquei que as crianças sob fome, ou ameaça de fome, na miséria, ou sob agressão – citei algumas fotos da guerra do Vietnã que nós, aqui, já publicamos – têm um olhar de medo e insegurança. Um olhar de dor. Elas, em maior ou menor grau, temem o futuro, que às vezes é apenas o dia seguinte, às vezes apenas a hora do almoço.
Na Coreia Popular, eu vira crianças com olhar confiante, como se o futuro fosse delas, aquele olhar seguro, só possível quando as necessidades, pelo menos as mais elementares, estão atendidas, e a sociedade oferece a elas a perspectiva, sem lugar para dúvidas, de se desenvolver como seres humanos – o que é o modo humano de existir.
Não me refiro apenas às necessidades materiais, mas também às necessidades (vale dizer: "carências") psicológicas que só uma saudável vida coletiva, o que inclui a vida familiar, é capaz de atender.
Presenciamos, várias vezes, o cuidado dos coreanos com suas crianças. No país, já sabíamos, essa não é uma missão circunscrita aos pais. Mas não tínhamos visto ainda como isso é profundo nos coreanos.
Um dia, o motorista do automóvel em que nos deslocávamos teve um problema: sua filha ficara doente. Foi imediatamente dispensado para ficar com a filha, e substituído, naquele dia, por um colega. No dia seguinte, nosso tradutor, funcionário graduado do Ministério das Relações Exteriores, formado por algumas das melhores universidades, não somente da Coreia, mas, inclusive, do Ocidente, disse que iria deixar-nos por algumas horas: soubera que a filha do motorista, já melhor de saúde, manifestara vontade de chupar laranjas - e lá foi o diplomata, atrás de laranjas para a filha do motorista.
Pode ser que o leitor já tenha presenciado algum pequeno incidente semelhante a este no Brasil. Há muita gente sensível e generosa entre nós. Porém, terá sigo algo excepcional e admirável. O extraordinário aqui foi a naturalidade como tudo ocorreu – acontecimentos desse tipo não são excepcionais na Coreia Popular; e ninguém, exceto nós, achou que era digno de admiração.
Andando pelo Jardim Zoológico de Pyongyang, onde há tigres brancos, cisnes negros e outros espécimens no mínimo curiosos, vimos o orgulho com que a maior parte das crianças – as que têm idade para tal – exibiam, no pescoço, o lenço vermelho dos pioneiros. Mais ainda, era visível o carinho que os pais demonstravam pelos filhos.
Algum teimoso leitor poderá dizer: mas aqui, na maioria, os pais também demonstram carinho pelos filhos. É verdade, graças aos céus e ao povo brasileiro. Porém, como é difícil, às vezes, depois de trabalhar oito ou mais horas, aguentando patrões (e, o que é pior, prepostos de patrões), com a cabeça cheia dos problemas que nos coloca a própria sobrevivência da família - para não falar da jornada, muitas vezes dupla, das mães -, ter paciência e compreensão com os filhos!
Quantas vezes, leitor, isso não exigiu esforço – e não pequeno - da sua parte? Nem estamos nos referindo aos problemas das crianças – embora eles, também, existam – mas apenas a compreender, como é exigido dos pais, a sua condição de crianças. A situação de vida e trabalho que, via de regra, temos no Brasil, não torna fácil a compreensão dos filhos. Quantos de nós já perdemos, um dia ou outro, a paciência com os filhos, sem que eles tenham feito algo além de ser crianças? E, como consequência, quantos de nós, somente depois de anos, às vezes décadas, depois de adultos, é que conseguimos entender os problemas dos nossos pais, para não falar daqueles que nunca o conseguem?
Problemas assim devem, sem dúvida, ainda existir num país socialista, como a Coreia. Mas o grau em que ocorrem parece muito menor do que aqui – a julgar pelo modo como os pais tratavam os filhos no Zoológico, ou no Parque de Diversões de Pyongyang, ou no espetacular Circo que as forças armadas mantêm para o lazer da população.
O leitor teimoso poderá, ainda, replicar: mas isso foi em público. Como vocês estão certos de que na vida puramente familiar as coisas são assim?
Há, pelo menos, um poderoso indicativo disto: o modo livre, espontâneo, desembaraçado, e educado, como as crianças se comportam. O leitor sabe do que estamos falando – um adulto pode simular um comportamento em público (embora, no caso, estamos falando de milhares de pessoas) que não corresponde ao seu comportamento em particular. Mas, as crianças, quando tentam fazê-lo, só revelam o que a simulação não deveria revelar.
Toda a questão está em que as crianças, na Coreia Popular, não têm apenas a vida familiar como forma de socialização. Por isso, a rigor, não cabe falar, como fizemos acima, em "vida puramente familiar". Até porque este "puramente" também não existe em nossa sociedade – ou em qualquer sociedade -, como sabe qualquer um que tenha uma televisão em casa.
Milhares de pensadores de todas as épocas, incluindo São Paulo, o nosso Ruy Barbosa, e, dizem, Stalin, afirmaram que "a família é a celula mater da sociedade". Mas, falar em "célula mater" significa, ao mesmo tempo, dizer que existem outras células além da primeira. Quanto mais o indivíduo se relaciona positivamente com o conjunto da sociedade, mais "socializado", isto é, civilizado, ele é. E quanto mais "privatizada", isto é, individualista, a sociedade seja, menos possibilidades existem de algum relacionamento positivo – aliás, como sabemos pelo final da sociedade escravagista e da sociedade feudal, há momentos em que o único relacionamento saudável com uma sociedade é negativo: é ser contra ela, para transformá-la em outra. Estes são, em geral, os períodos mais angustiantes da História - e também aqueles em que pode se abrir uma nova época para o ser humano.
Na Coreia, essa nova época, apesar de todas as dificuldades acarretadas por um cerco que somente não é completo em virtude da vizinhança e da hoje longa amizade coreano-chinesa, já chegou. Portanto, é natural que o comportamento das pessoas, em especial o relacionamento entre pais e filhos, demande muito menos esforços, seja bem mais livre, do que na nossa sociedade. Em poucas palavras, o relacionamento entre pais e filhos exige menos esforço onde a sociedade está a seu favor, e não contra, onde a sociedade facilita esse relacionamento, inclusive através de instituições que estão além da família – o que não se pode dizer, por exemplo, da TV no Brasil, em geral um veículo de infâmias antissociais sobre as crianças.
Depois de um dia repleto de atividades, um amigo coreano, fluente em castelhano, mas não em português, sugeriu que fôssemos, após o jantar, ao "parque de diversificação". Pensei que fosse alguma exposição econômica. Estávamos cansados – mais de 11 horas de voo entre São Paulo e Paris, mais 11 de Paris até Pequim, e mais uma hora entre Pequim e Pyongyang, mais os problemas do fuso horário, não são brincadeira para quem já passou dos 50 anos, para falar modestamente (no meu caso, sem modéstia, isso quer dizer que falta pouco para os 60...).
Ainda bem que, apesar do cansaço, aceitamos a sugestão do nosso amigo. Ele, ao tentar falar o português, cometera um pequeno e compreensível equívoco. Tratava-se do Parque de Diversões de Pyongyang.
A construção do parque foi uma ideia do general Kim Zong Un, vice-presidente da Comissão Nacional de Defesa, aprovada pelo presidente desta instituição, e secretário-geral do Partido do Trabalho da Coreia, Kim Zong Il, chamado pelos coreanos "o grande dirigente". O general Kim Zong Un também dirigiu pessoalmente os trabalhos de edificação do Parque.
É inevitável, para um brasileiro, que a toda hora ocorressem comparações com nossa vida aqui, em nosso país. Meu pai era um operário que durante 40 anos trabalhou em estaleiros, estradas ou em fábricas, mas, nos fins de semana, quando não cozinhava em casa para livrar minha mãe dessa tarefa, fazia questão de sair com a família. Íamos à Quinta da Boa Vista, onde fica o Zoológico do Rio, ou, antes de 1964, quando a situação era muito menos apertada, íamos almoçar com os vizinhos num restaurante alemão que ficava na Rio-Petrópolis. Uma vez até entramos na Hípica, clube granfino que abrira as portas ao público para uma "festa da uva".
Porém, durante todo o tempo em que trabalhou, jamais meu pai conseguiu sair, com a família ou sozinho, no meio da semana. No dia seguinte, às 5 horas da manhã, em certas épocas até mais cedo, ele tinha que tomar o seu café e ir ao trabalho – do qual chegava sempre bem extenuado.
No entanto, no Parque de Diversões de Pyongyang, numa noite de quinta-feira, havia seis ou sete mil crianças acompanhadas pelos pais - que tinham, todos, o ar inconfundível de trabalhadores. Para brasileiros comuns, como era o nosso caso, seria quase incrível, se não estivéssemos vendo (quase que escrevo "vendo com nossos olhos", mas é difícil que o leitor presuma que estávamos vendo com outros órgãos...).
O general Kim Zong Un tinha razão ao se preocupar com a diversão do povo. Um governo que não se preocupa com isso, despreza aquilo que Getúlio chamou "o trabalho nacional", com seu fundamental e decisivo elemento, os homens, as mulheres, e seus filhos.
Não representei muito bem as cores brasileiras no Parque de Diversões. Existe lá uma "punching ball", aquela bola que os boxeadores esmurram, para testar a potência do soco. Dei um murro com a direita, justamente a mão do braço afetado pela insidiosa Lesão por Esforços Repetitivos (LER). Resultado: meu soco, segundo o medidor, chegou apenas a 40 quilos. Um vexame. O amigo que nos levou ao Parque conseguiu chegar, num único soco, a mais de 200 quilos. Além disso, venceu minha mulher no tiro-ao-alvo eletrônico, matando todos os pombos virtuais que apareceram na tela, vindos dos mais insuspeitados lugares. Também, com o treinamento que os coreanos fazem para defender o país dos americanos, essas coisas devem ser fichinha...
Publicado por Carlos Lopes, no jornal A Hora do Povo