Na Fábrica Têxtil de Pyongyang trabalham nove mil mulheres. Pela manhã, chegavam trabalhadoras com seus filhos agasalhados, levados, confortavelmente, ao modo oriental – hoje, também aqui, popular: nas costas.
As mulheres levam os filhos pequenos para a fábrica porque eles ficam numa imensa creche, enquanto as mães trabalham. Há intervalos, na jornada, para que as mães, se quiserem - e sempre querem - vejam seus filhos, inclusive, se for o caso, os amamentem.
Curiosamente – para brasileiros que conhecem algumas poucas instituições públicas que existem em nosso país – as atendentes da creche também são mães. Há um motivo óbvio para isso: as mães percebem melhor do que qualquer um as necessidades dos bebês. Um dos poucos psicanalistas que, após Freud, tratou a psicanálise como ciência - inclusive ciência experimental -, o austríaco René Spitz, deteve-se, em um livro fascinante, "O Primeiro Ano de Vida", na relação específica entre mãe e filho (ou filha) nos estágios mais precoces do desenvolvimento. Chamou, a essa relação, "díade", um termo retirado da música, onde significa um acorde formado por duas notas musicais. Sem entrar numa discussão conceitual – aqui não é o lugar – o que ele observa é a comunicação entre a mãe (ou quem faz a função de mãe) e o bebê, o entendimento, sem linguagem verbal, que existe entre os dois, e que, nessa fase da vida da criança, só existe nessa relação. Em suma, o apoio afetivo da mãe, em especial nos primeiros seis meses, é decisivo para o conjunto da vida, inclusive para a próxima relação com o pai.
Não sei se os coreanos conhecem a obra de Spitz. Mas, se não a conhecem, de alguma forma chegaram a conclusões semelhantes: nada melhor do que mães para atenderem crianças numa creche. Pode parecer que isso é óbvio. Infelizmente, não é. Tanto assim que a motivação inicial do trabalho de Spitz foi - após a sua emigração da Europa, refugiado do nazismo – a constatação de casos de depressão por privação afetiva em bebês que estavam em creches e hospitais dos EUA (chamada, por ele, "depressão anaclítica", isto é, depressão por falta de apoio emocional).
A Fábrica Têxtil de Pyongyang é, também, um dos símbolos da resistência coreana à agressão norte-americana. Construída logo após a libertação do país da ocupação japonesa, por iniciativa de Kim Il Sung, o fundador da Coreia moderna - a quem os coreanos chamam "o grande líder" -, ela foi destruída duas vezes por bombardeios aéreos dos EUA.
Nunca foi um alvo militar – a fábrica, como as daqui, produz tecidos para as roupas da população civil – e os mandantes dos bombardeios sabiam disso. Mas, como hoje é, infelizmente, notório, o alvo das agressões do establishment dos EUA está, principalmente, na população civil, o que inclui a infraestrutura econômica do país agredido. Até elaboraram uma teoria sobre o assunto, a sinistra "guerra total", segundo eles, baseada no que fizeram os generais Sherman e Grant na Guerra de Secessão.
Entretanto, Grant e Sherman estavam combatendo os escravagistas do sul dos EUA, sob a liderança do grande presidente Lincoln. O que a casta financeira norte-americana fez após a guerra hispano-americana, e, sobretudo, depois da II Guerra Mundial – nas Filipinas, na Coreia, no Vietnã, no Iraque, na Líbia - tem mais a ver com Hitler e Goering do que com os generais da guerra civil americana. Em 1933, bem antes da agressão à Coreia, e quando Hitler apenas acabava de tomar o poder, o general Smedley Butler, organizador do atual corpo de fuzileiros navais dos EUA (os, tristemente famosos, "marines"), já havia dito:
"Eu ajudei a fazer o México, especialmente Tampico, seguro para os interesses das empresas de petróleo americanas, em 1914. Eu ajudei a fazer do Haiti e de Cuba lugares decentes para que os rapazes do National City Bank arrecadassem rendimentos. Eu ajudei a estuprar meia dúzia de repúblicas da América Central em prol dos lucros de Wall Street. O registro de extorsões é grande. Eu ajudei a purificar a Nicarágua para a casa bancária internacional dos Brown Brothers (onde eu tinha ouvido esse nome antes?) em 1909-1912. Eu trouxe a luz, na República Dominicana, para os interesses dos usineiros americanos, em 1916. Na China, eu ajudei a Standard Oil a seguir o seu caminho sem ser molestada. Durante aqueles anos, eu participei de uma expansão da extorsão. Olhando para trás, sinto que poderia ter dado a Al Capone umas poucas sugestões. O melhor que ele pôde fazer foi operar suas extorsões em três distritos. Eu operei em três continentes." (ver HP, 12/01/2007 e o livro de Butler, "War Is a Racket", Round Table Press, NY, 1935).
Entretanto, é forçoso reconhecer que nada se compara às agressões norte-americanas após a II Guerra. Os píncaros do crime foram atingidos na agressão à Coreia e nas que seguiram. Só o nazismo e o imperialismo japonês são medida de comparação para o que os EUA fizeram – e continuam fazendo – depois da II Guerra. Aliás, Hitler é mais uma medida de inspiração do que de comparação. Como disse Howard Hunt, chefe de operações da CIA na Guatemala na intervenção que depôs, em 1954, o presidente Jacobo Árbenz: "o que nós queríamos fazer era uma campanha de terror, para aterrorizar Árbenz particularmente, aterrorizar suas tropas, tal como os bombardeiros Stukas alemães aterrorizaram a população da Holanda, Bélgica e Polônia no início da II Guerra" (ver HP, 12/09/2003 - Howard Hunt, entrevista ao National Security Archive).
Se na Guatemala foi assim, o leitor pode, ainda que palidamente, imaginar como foi na Coreia.
Os coreanos, naturalmente, reconstruíram a Fábrica Têxtil de Pyongyang duas vezes durante a guerra. Lembrei de um ditado, repetido pelo detetive de ficção Charlie Chan, personagem de seis livros – e não sei quantos filmes e histórias em quadrinhos – do escritor (por sinal, americano) Earl Derr Biggers: "se caíres sete vezes, levanta-te oito".
Porém, depois de vencida a agressão dos EUA, havia um problema na Fábrica Têxtil de Pyongyang: para trabalhar nela, as mulheres ficavam afastadas dos maridos – ou noivos ou namorados - que estavam em outras unidades fabris, ou, frequentemente, no campo. Assim, além de outras necessidades que o leitor pode deduzir, os pais não participavam do cuidado aos filhos.
A solução foi construir, em torno da Fábrica Têxtil de Pyongyang, uma série de outras fábricas – em geral, produtoras de máquinas e equipamentos – e transferir os maridos para elas. Assim, eles poderiam (e podem) ficar perto de suas mulheres, ajudando-as, nos intervalos do trabalho, quanto aos filhos.
As coreanas (e coreanos) também têm um ditado para o que consideram a relação ideal entre maridos e mulheres. Foi uma mulher, na Fábrica Têxtil de Pyongyang, que, após relatar a decisão, tomada por Kim Il Sung, de trazer os maridos para perto das mulheres, nos repetiu, sorrindo, esse ditado: "a mulher deve seguir o marido, assim como a linha segue a agulha".
Olhei, com o canto dos olhos, para minha mulher, só para perceber a reação. Mas Sandra, que não é nada submissa (quase escrevo: "ai de mim...", mas seria muito injusto), entendera imediatamente o significado da frase.
Então, antes que alguma leitora, ciosa de sua independência, nos escreva, furiosa, esclarecemos: que ninguém pense que isso significa a submissão da mulher ao marido. Como vimos pela história da Fábrica Têxtil de Pyongyang, nesse caso quem seguiu a linha foi a agulha... Nem por isso os maridos se tornaram submissos às mulheres.
O ditado, para os coreanos de hoje, significa apenas (mas esse "apenas" é um mundo a ser conquistado) que mulheres e maridos devem ficar juntos, cuidar dos filhos juntos - de preferência, trabalharem juntos ou o mais próximo possível. O que quer dizer conscientemente juntos, pois as mulheres não são obrigadas a casarem, ou a permanecer casadas, com quem não querem.
Portanto, leitora, se você entendeu errado, o que é compreensível, pode deixar a indignação e a fúria de lado – nem tudo que parece às nossas mentes, algo viciadas pela ainda presente submissão da mulher em nosso país, é o que superficialmente parece (e a repetição do "parece", nesta frase, não é um cochilo de estilo do redator).
Um novo conteúdo às vezes se expressa por formas antigas – mas nem por isso ele deixa de ser novo.
Até porque, após seu retorno a Pyongyang - em 1945, quando a Coreia se libertou do Japão - a primeira lei assinada por Kim Il Sung foi a "Lei da Igualdade entre Homens e Mulheres", antes mesmo da lei de reforma agrária.
Para os brasileiros, que assistem aos avanços da condição feminina desde 1934, quando o presidente Getúlio regulamentou o direito de voto das mulheres, é difícil aquilatar o significado revolucionário da primeira lei de Kim Il Sung (se bem que, no Brasil, o ambiente antes de 1930 era tão atrasado que nosso maior poeta do século XX, Carlos Drummond de Andrade, escreveu, em 1928, ironizando o escândalo, quando uma mulher conseguiu uma decisão judicial para votar e ser votada: "Mulher votando?/ Mulher, quem sabe, Chefe da Nação?/ O escândalo abafa a Mantiqueira,/ faz tremerem os trilhos da Central/ e acende no Bairro dos Funcionários,/ melhor: na cidade inteira funcionária,/ a suspeita de que Minas endoidece,/ já endoideceu: o mundo acaba").
Na Coreia, como lembra Kim Il Sung em suas memórias ("No Transcurso do Século"), a situação da mulher era feudal. A vida para elas era tão difícil, tão árdua, diz ele, que algumas aderiam a religiões ocidentais apenas para evadir-se um pouco da vida cotidiana durante o culto.
Isso, no melhor dos casos: aqueles em que não eram tornadas escravas sexuais pelo ocupantes japoneses – em 35 anos, da anexação pelo Japão à libertação, 200 mil coreanas foram forçadas a essa condição, um crime que o Estado japonês ainda resiste a reconhecer plenamente, apesar de, além dos depoimentos de milhares de vítimas, além da condenação pelos tribunais do pós-guerra, montanhas de documentos terem sido descobertos por historiadores do próprio Japão, demonstrando que isso era uma política oficial.
Existem poucas ocupações mais infames – se é que existe alguma – do que a da Coreia pelo Japão, iniciada em 1894 e acelerada em 1905, após o aval explícito dos EUA, através do acordo secreto Taft-Katsura (em troca do reconhecimento à anexação das Filipinas, o secretário da Guerra dos EUA, depois presidente, William Howard Taft, comprometeu-se com o primeiro-ministro japonês, Katsura Taro, a reconhecer a suserania do Japão sobre a Coreia – as notas da conversação vieram a público 19 anos depois, em 1924, quando a Coreia já fora anexada pelo Japão).
É impossível compreender razoavelmente a Coreia, e o povo coreano, sem conhecer um pouco da sua História. Por isso, aqui nos estenderemos (não muito) sobre esse tema.
Em 1905, o imperador coreano e seu primeiro-ministro recusaram-se a aceitar a condição de vassalagem da Coreia em relação ao Japão. A aceitação, totalmente ilegal, foi assinada - com o primeiro-ministro preso pelos japoneses - por cinco ministros sem autoridade para tal, conhecidos na História da Coreia como "os cinco ministros traidores".
O imperador, recusando-se a ratificar, apelou para a China e para os chefes de Estado ocidentais, e, depois, para a Conferência de Haia, em 1907 – mas a Coreia foi proibida de participar em Haia e o imperador foi deposto pelos japoneses, o que levantou vários setores nacionalistas contra a ocupação. No exterior, os três emissários coreanos, impedidos de entrar na Conferência, fizeram o possível para denunciar a situação do país.
O imperialismo japonês derrotara a China, então sob a decadente dinastia manchu, em 1895, e a Rússia, sob a decadente dinastia czarista, em 1904-1907. As potências ocidentais tornaram-se cúmplices na destruição do Estado da Coreia. Os coreanos aprendiam, dolorosamente, que sua liberdade dependia, antes de tudo, de suas próprias forças – ou não haveria liberdade.
Não foi a primeira lição, nem foi só isso (!) o que eles aprenderam: a entrada das tropas japonesas na Coreia, em 1894, teve como pretexto o apelo dos feudais coreanos, derrotados no início daquele ano pelo exército guerrilheiro da revolução camponesa "Donghak", aos manchus da China para que esmagassem a revolta.
Donghak era uma religião coreana da segunda metade do século XIX que pregava "a igualdade de todos os seres humanos". O programa de sua revolução assemelha-se, em aspectos fundamentais, mais no conteúdo do que na forma, ao Plano de Ayala, escrito por Zapata para a revolução mexicana.
O Japão aproveitou-se da presença de tropas manchus na Coreia para romper a Convenção de Tientsin, estabelecida com a China em 1885, que proibia a intervenção militar, tanto japonesa quanto chinesa, na Península, exceto se a outra parte fosse notificada antecipadamente (o que a dinastia manchu fez, mas o Império do Japão passou por cima desse detalhe).
Depois da declaração de guerra do Japão à China, o bem armado exército japonês massacrou os camponeses coreanos, que só dispunham de lanças, espadas, arcos-e-flechas e alguns velhos bacamartes.
Daí por diante, há uma coleção inumerável de desmandos, ultrajes e crimes dos imperialistas japoneses na Coreia. No ano seguinte, 1895, a imperatriz coreana, Myeongseong, adversária da ingerência japonesa, foi assassinada a mando do embaixador do Japão – os assassinos, que invadiram o palácio e chacinaram os guardas, eram agentes japoneses.
Evidentemente, o embaixador - um visconde e general nipônico - não cometera o crime sem o sinal verde, ou a ordem, de Tóquio. O escândalo internacional, mesmo naquela época, foi tão grande que o governo japonês resolveu encenar uma farsa: um julgamento do seu embaixador na Coreia, em que este confessou a ideia e a organização do assassinato, mas argumentou que não se tratava de um crime, pois seu objetivo era a "supremacia" do Japão na Coreia. O réu foi absolvido "por insuficiência de provas".
No entanto, a política de Myeongseong – e de seu marido, o imperador Gojong – era colocar-se sob o abrigo da Rússia czarista para se opor ao Japão. Certamente, depender de outros para ser independente é a maneira mais segura de não ser independente. Gojong asilou-se na embaixada russa depois do assassinato da esposa, só voltando ao palácio em 1897, sob proteção de tropas czaristas. Depois da derrota russa na guerra com o Japão – logo no início, 1904, após o desembarque do exército japonês, as tropas czaristas foram expulsas da Coreia - essa política tornou-se insustentável. Em seguida, o Japão impôs sua suserania sobre a Coreia.
No entanto, a resistência coreana não cessou. Além dos levantamentos contra a ocupação, em 1909, o "Residente-Geral da Coreia" (uma espécie de vice-rei japonês) foi executado pelo patriota coreano An Jung Gun, homem notavelmente culto e consciente.
Prisioneiro dos japoneses, An Jung Gun fez estremecer os algozes ao defender o seu ato no tribunal-farsa a que foi submetido – o que talvez explique porque ele foi "julgado" nada menos do que seis vezes. An Jung Gun exigiu que fosse tratado como prisioneiro de guerra e comandante do exército de resistência coreano, e listou os crimes do "Residente-Geral" (um dos principais políticos da casta feudal-monopolista japonesa, quatro vezes primeiro-ministro, inclusive na época do assassinato de Myeongseong), entre eles: o assassinato da imperatriz coreana; a deposição do imperador coreano; o massacre de civis coreanos; a pilhagem de ferrovias, jazidas, florestas e rios coreanos; a imposição ao país da moeda japonesa; o impedimento da educação aos coreanos, com o confisco e queima dos seus livros didáticos.
Pouco antes de seu martírio na forca, An Jung Gun disse uma frase que repercutiria por toda a História coreana posterior: "Eu tenho a felicidade de oferecer a minha vida por meu país, assim é o comportamento de um patriota com espírito nobre". Mas, talvez, nada seja mais significativo do ambiente que a ocupação japonesa provocou na Coreia, e do caráter do povo desse país já naquela época, do que a mensagem da mãe de An Jung Gun, recebida pelo filho momentos antes de passar à eternidade: "Sua morte é por amor ao nosso país, e eu não peço covardemente por sua vida. Sua valente morte lutando pela justiça é para mim o último carinho de um filho por sua mãe".
An Jung Gun era católico – e, como nós chamamos, católico praticante. Apesar disso, por submissão aos japoneses, o então bispo da Coreia proibiu que se lhe administrasse a extrema-unção. Mas os sacerdotes menos graduados recusaram-se a obedecer – e An Jung Gun recebeu o sacramento.
Assim, em 1910, foi debaixo de ferro, fogo, e sangue aos borbotões, que o Japão anexou a Coreia – o imperador Gojong, deposto desde 1907, foi mantido em prisão domiciliar até sua morte, em 1919, por envenenamento. Seu funeral provocou outros levantamentos, em toda a Coreia, contra a opressão japonesa.
Publicado por Carlos Lopes no jornal A Hora do Povo
As mulheres levam os filhos pequenos para a fábrica porque eles ficam numa imensa creche, enquanto as mães trabalham. Há intervalos, na jornada, para que as mães, se quiserem - e sempre querem - vejam seus filhos, inclusive, se for o caso, os amamentem.
Curiosamente – para brasileiros que conhecem algumas poucas instituições públicas que existem em nosso país – as atendentes da creche também são mães. Há um motivo óbvio para isso: as mães percebem melhor do que qualquer um as necessidades dos bebês. Um dos poucos psicanalistas que, após Freud, tratou a psicanálise como ciência - inclusive ciência experimental -, o austríaco René Spitz, deteve-se, em um livro fascinante, "O Primeiro Ano de Vida", na relação específica entre mãe e filho (ou filha) nos estágios mais precoces do desenvolvimento. Chamou, a essa relação, "díade", um termo retirado da música, onde significa um acorde formado por duas notas musicais. Sem entrar numa discussão conceitual – aqui não é o lugar – o que ele observa é a comunicação entre a mãe (ou quem faz a função de mãe) e o bebê, o entendimento, sem linguagem verbal, que existe entre os dois, e que, nessa fase da vida da criança, só existe nessa relação. Em suma, o apoio afetivo da mãe, em especial nos primeiros seis meses, é decisivo para o conjunto da vida, inclusive para a próxima relação com o pai.
Não sei se os coreanos conhecem a obra de Spitz. Mas, se não a conhecem, de alguma forma chegaram a conclusões semelhantes: nada melhor do que mães para atenderem crianças numa creche. Pode parecer que isso é óbvio. Infelizmente, não é. Tanto assim que a motivação inicial do trabalho de Spitz foi - após a sua emigração da Europa, refugiado do nazismo – a constatação de casos de depressão por privação afetiva em bebês que estavam em creches e hospitais dos EUA (chamada, por ele, "depressão anaclítica", isto é, depressão por falta de apoio emocional).
A GUERRA
A Fábrica Têxtil de Pyongyang é, também, um dos símbolos da resistência coreana à agressão norte-americana. Construída logo após a libertação do país da ocupação japonesa, por iniciativa de Kim Il Sung, o fundador da Coreia moderna - a quem os coreanos chamam "o grande líder" -, ela foi destruída duas vezes por bombardeios aéreos dos EUA.
Nunca foi um alvo militar – a fábrica, como as daqui, produz tecidos para as roupas da população civil – e os mandantes dos bombardeios sabiam disso. Mas, como hoje é, infelizmente, notório, o alvo das agressões do establishment dos EUA está, principalmente, na população civil, o que inclui a infraestrutura econômica do país agredido. Até elaboraram uma teoria sobre o assunto, a sinistra "guerra total", segundo eles, baseada no que fizeram os generais Sherman e Grant na Guerra de Secessão.
Entretanto, Grant e Sherman estavam combatendo os escravagistas do sul dos EUA, sob a liderança do grande presidente Lincoln. O que a casta financeira norte-americana fez após a guerra hispano-americana, e, sobretudo, depois da II Guerra Mundial – nas Filipinas, na Coreia, no Vietnã, no Iraque, na Líbia - tem mais a ver com Hitler e Goering do que com os generais da guerra civil americana. Em 1933, bem antes da agressão à Coreia, e quando Hitler apenas acabava de tomar o poder, o general Smedley Butler, organizador do atual corpo de fuzileiros navais dos EUA (os, tristemente famosos, "marines"), já havia dito:
"Eu ajudei a fazer o México, especialmente Tampico, seguro para os interesses das empresas de petróleo americanas, em 1914. Eu ajudei a fazer do Haiti e de Cuba lugares decentes para que os rapazes do National City Bank arrecadassem rendimentos. Eu ajudei a estuprar meia dúzia de repúblicas da América Central em prol dos lucros de Wall Street. O registro de extorsões é grande. Eu ajudei a purificar a Nicarágua para a casa bancária internacional dos Brown Brothers (onde eu tinha ouvido esse nome antes?) em 1909-1912. Eu trouxe a luz, na República Dominicana, para os interesses dos usineiros americanos, em 1916. Na China, eu ajudei a Standard Oil a seguir o seu caminho sem ser molestada. Durante aqueles anos, eu participei de uma expansão da extorsão. Olhando para trás, sinto que poderia ter dado a Al Capone umas poucas sugestões. O melhor que ele pôde fazer foi operar suas extorsões em três distritos. Eu operei em três continentes." (ver HP, 12/01/2007 e o livro de Butler, "War Is a Racket", Round Table Press, NY, 1935).
Entretanto, é forçoso reconhecer que nada se compara às agressões norte-americanas após a II Guerra. Os píncaros do crime foram atingidos na agressão à Coreia e nas que seguiram. Só o nazismo e o imperialismo japonês são medida de comparação para o que os EUA fizeram – e continuam fazendo – depois da II Guerra. Aliás, Hitler é mais uma medida de inspiração do que de comparação. Como disse Howard Hunt, chefe de operações da CIA na Guatemala na intervenção que depôs, em 1954, o presidente Jacobo Árbenz: "o que nós queríamos fazer era uma campanha de terror, para aterrorizar Árbenz particularmente, aterrorizar suas tropas, tal como os bombardeiros Stukas alemães aterrorizaram a população da Holanda, Bélgica e Polônia no início da II Guerra" (ver HP, 12/09/2003 - Howard Hunt, entrevista ao National Security Archive).
Se na Guatemala foi assim, o leitor pode, ainda que palidamente, imaginar como foi na Coreia.
LINHA E AGULHA
Os coreanos, naturalmente, reconstruíram a Fábrica Têxtil de Pyongyang duas vezes durante a guerra. Lembrei de um ditado, repetido pelo detetive de ficção Charlie Chan, personagem de seis livros – e não sei quantos filmes e histórias em quadrinhos – do escritor (por sinal, americano) Earl Derr Biggers: "se caíres sete vezes, levanta-te oito".
Porém, depois de vencida a agressão dos EUA, havia um problema na Fábrica Têxtil de Pyongyang: para trabalhar nela, as mulheres ficavam afastadas dos maridos – ou noivos ou namorados - que estavam em outras unidades fabris, ou, frequentemente, no campo. Assim, além de outras necessidades que o leitor pode deduzir, os pais não participavam do cuidado aos filhos.
A solução foi construir, em torno da Fábrica Têxtil de Pyongyang, uma série de outras fábricas – em geral, produtoras de máquinas e equipamentos – e transferir os maridos para elas. Assim, eles poderiam (e podem) ficar perto de suas mulheres, ajudando-as, nos intervalos do trabalho, quanto aos filhos.
As coreanas (e coreanos) também têm um ditado para o que consideram a relação ideal entre maridos e mulheres. Foi uma mulher, na Fábrica Têxtil de Pyongyang, que, após relatar a decisão, tomada por Kim Il Sung, de trazer os maridos para perto das mulheres, nos repetiu, sorrindo, esse ditado: "a mulher deve seguir o marido, assim como a linha segue a agulha".
Olhei, com o canto dos olhos, para minha mulher, só para perceber a reação. Mas Sandra, que não é nada submissa (quase escrevo: "ai de mim...", mas seria muito injusto), entendera imediatamente o significado da frase.
Então, antes que alguma leitora, ciosa de sua independência, nos escreva, furiosa, esclarecemos: que ninguém pense que isso significa a submissão da mulher ao marido. Como vimos pela história da Fábrica Têxtil de Pyongyang, nesse caso quem seguiu a linha foi a agulha... Nem por isso os maridos se tornaram submissos às mulheres.
O ditado, para os coreanos de hoje, significa apenas (mas esse "apenas" é um mundo a ser conquistado) que mulheres e maridos devem ficar juntos, cuidar dos filhos juntos - de preferência, trabalharem juntos ou o mais próximo possível. O que quer dizer conscientemente juntos, pois as mulheres não são obrigadas a casarem, ou a permanecer casadas, com quem não querem.
Portanto, leitora, se você entendeu errado, o que é compreensível, pode deixar a indignação e a fúria de lado – nem tudo que parece às nossas mentes, algo viciadas pela ainda presente submissão da mulher em nosso país, é o que superficialmente parece (e a repetição do "parece", nesta frase, não é um cochilo de estilo do redator).
Um novo conteúdo às vezes se expressa por formas antigas – mas nem por isso ele deixa de ser novo.
Até porque, após seu retorno a Pyongyang - em 1945, quando a Coreia se libertou do Japão - a primeira lei assinada por Kim Il Sung foi a "Lei da Igualdade entre Homens e Mulheres", antes mesmo da lei de reforma agrária.
Para os brasileiros, que assistem aos avanços da condição feminina desde 1934, quando o presidente Getúlio regulamentou o direito de voto das mulheres, é difícil aquilatar o significado revolucionário da primeira lei de Kim Il Sung (se bem que, no Brasil, o ambiente antes de 1930 era tão atrasado que nosso maior poeta do século XX, Carlos Drummond de Andrade, escreveu, em 1928, ironizando o escândalo, quando uma mulher conseguiu uma decisão judicial para votar e ser votada: "Mulher votando?/ Mulher, quem sabe, Chefe da Nação?/ O escândalo abafa a Mantiqueira,/ faz tremerem os trilhos da Central/ e acende no Bairro dos Funcionários,/ melhor: na cidade inteira funcionária,/ a suspeita de que Minas endoidece,/ já endoideceu: o mundo acaba").
Na Coreia, como lembra Kim Il Sung em suas memórias ("No Transcurso do Século"), a situação da mulher era feudal. A vida para elas era tão difícil, tão árdua, diz ele, que algumas aderiam a religiões ocidentais apenas para evadir-se um pouco da vida cotidiana durante o culto.
Isso, no melhor dos casos: aqueles em que não eram tornadas escravas sexuais pelo ocupantes japoneses – em 35 anos, da anexação pelo Japão à libertação, 200 mil coreanas foram forçadas a essa condição, um crime que o Estado japonês ainda resiste a reconhecer plenamente, apesar de, além dos depoimentos de milhares de vítimas, além da condenação pelos tribunais do pós-guerra, montanhas de documentos terem sido descobertos por historiadores do próprio Japão, demonstrando que isso era uma política oficial.
ANEXAÇÃO
Existem poucas ocupações mais infames – se é que existe alguma – do que a da Coreia pelo Japão, iniciada em 1894 e acelerada em 1905, após o aval explícito dos EUA, através do acordo secreto Taft-Katsura (em troca do reconhecimento à anexação das Filipinas, o secretário da Guerra dos EUA, depois presidente, William Howard Taft, comprometeu-se com o primeiro-ministro japonês, Katsura Taro, a reconhecer a suserania do Japão sobre a Coreia – as notas da conversação vieram a público 19 anos depois, em 1924, quando a Coreia já fora anexada pelo Japão).
É impossível compreender razoavelmente a Coreia, e o povo coreano, sem conhecer um pouco da sua História. Por isso, aqui nos estenderemos (não muito) sobre esse tema.
Em 1905, o imperador coreano e seu primeiro-ministro recusaram-se a aceitar a condição de vassalagem da Coreia em relação ao Japão. A aceitação, totalmente ilegal, foi assinada - com o primeiro-ministro preso pelos japoneses - por cinco ministros sem autoridade para tal, conhecidos na História da Coreia como "os cinco ministros traidores".
O imperador, recusando-se a ratificar, apelou para a China e para os chefes de Estado ocidentais, e, depois, para a Conferência de Haia, em 1907 – mas a Coreia foi proibida de participar em Haia e o imperador foi deposto pelos japoneses, o que levantou vários setores nacionalistas contra a ocupação. No exterior, os três emissários coreanos, impedidos de entrar na Conferência, fizeram o possível para denunciar a situação do país.
O imperialismo japonês derrotara a China, então sob a decadente dinastia manchu, em 1895, e a Rússia, sob a decadente dinastia czarista, em 1904-1907. As potências ocidentais tornaram-se cúmplices na destruição do Estado da Coreia. Os coreanos aprendiam, dolorosamente, que sua liberdade dependia, antes de tudo, de suas próprias forças – ou não haveria liberdade.
Não foi a primeira lição, nem foi só isso (!) o que eles aprenderam: a entrada das tropas japonesas na Coreia, em 1894, teve como pretexto o apelo dos feudais coreanos, derrotados no início daquele ano pelo exército guerrilheiro da revolução camponesa "Donghak", aos manchus da China para que esmagassem a revolta.
Donghak era uma religião coreana da segunda metade do século XIX que pregava "a igualdade de todos os seres humanos". O programa de sua revolução assemelha-se, em aspectos fundamentais, mais no conteúdo do que na forma, ao Plano de Ayala, escrito por Zapata para a revolução mexicana.
O Japão aproveitou-se da presença de tropas manchus na Coreia para romper a Convenção de Tientsin, estabelecida com a China em 1885, que proibia a intervenção militar, tanto japonesa quanto chinesa, na Península, exceto se a outra parte fosse notificada antecipadamente (o que a dinastia manchu fez, mas o Império do Japão passou por cima desse detalhe).
Depois da declaração de guerra do Japão à China, o bem armado exército japonês massacrou os camponeses coreanos, que só dispunham de lanças, espadas, arcos-e-flechas e alguns velhos bacamartes.
Daí por diante, há uma coleção inumerável de desmandos, ultrajes e crimes dos imperialistas japoneses na Coreia. No ano seguinte, 1895, a imperatriz coreana, Myeongseong, adversária da ingerência japonesa, foi assassinada a mando do embaixador do Japão – os assassinos, que invadiram o palácio e chacinaram os guardas, eram agentes japoneses.
Evidentemente, o embaixador - um visconde e general nipônico - não cometera o crime sem o sinal verde, ou a ordem, de Tóquio. O escândalo internacional, mesmo naquela época, foi tão grande que o governo japonês resolveu encenar uma farsa: um julgamento do seu embaixador na Coreia, em que este confessou a ideia e a organização do assassinato, mas argumentou que não se tratava de um crime, pois seu objetivo era a "supremacia" do Japão na Coreia. O réu foi absolvido "por insuficiência de provas".
No entanto, a política de Myeongseong – e de seu marido, o imperador Gojong – era colocar-se sob o abrigo da Rússia czarista para se opor ao Japão. Certamente, depender de outros para ser independente é a maneira mais segura de não ser independente. Gojong asilou-se na embaixada russa depois do assassinato da esposa, só voltando ao palácio em 1897, sob proteção de tropas czaristas. Depois da derrota russa na guerra com o Japão – logo no início, 1904, após o desembarque do exército japonês, as tropas czaristas foram expulsas da Coreia - essa política tornou-se insustentável. Em seguida, o Japão impôs sua suserania sobre a Coreia.
No entanto, a resistência coreana não cessou. Além dos levantamentos contra a ocupação, em 1909, o "Residente-Geral da Coreia" (uma espécie de vice-rei japonês) foi executado pelo patriota coreano An Jung Gun, homem notavelmente culto e consciente.
Prisioneiro dos japoneses, An Jung Gun fez estremecer os algozes ao defender o seu ato no tribunal-farsa a que foi submetido – o que talvez explique porque ele foi "julgado" nada menos do que seis vezes. An Jung Gun exigiu que fosse tratado como prisioneiro de guerra e comandante do exército de resistência coreano, e listou os crimes do "Residente-Geral" (um dos principais políticos da casta feudal-monopolista japonesa, quatro vezes primeiro-ministro, inclusive na época do assassinato de Myeongseong), entre eles: o assassinato da imperatriz coreana; a deposição do imperador coreano; o massacre de civis coreanos; a pilhagem de ferrovias, jazidas, florestas e rios coreanos; a imposição ao país da moeda japonesa; o impedimento da educação aos coreanos, com o confisco e queima dos seus livros didáticos.
Pouco antes de seu martírio na forca, An Jung Gun disse uma frase que repercutiria por toda a História coreana posterior: "Eu tenho a felicidade de oferecer a minha vida por meu país, assim é o comportamento de um patriota com espírito nobre". Mas, talvez, nada seja mais significativo do ambiente que a ocupação japonesa provocou na Coreia, e do caráter do povo desse país já naquela época, do que a mensagem da mãe de An Jung Gun, recebida pelo filho momentos antes de passar à eternidade: "Sua morte é por amor ao nosso país, e eu não peço covardemente por sua vida. Sua valente morte lutando pela justiça é para mim o último carinho de um filho por sua mãe".
An Jung Gun era católico – e, como nós chamamos, católico praticante. Apesar disso, por submissão aos japoneses, o então bispo da Coreia proibiu que se lhe administrasse a extrema-unção. Mas os sacerdotes menos graduados recusaram-se a obedecer – e An Jung Gun recebeu o sacramento.
Assim, em 1910, foi debaixo de ferro, fogo, e sangue aos borbotões, que o Japão anexou a Coreia – o imperador Gojong, deposto desde 1907, foi mantido em prisão domiciliar até sua morte, em 1919, por envenenamento. Seu funeral provocou outros levantamentos, em toda a Coreia, contra a opressão japonesa.
Publicado por Carlos Lopes no jornal A Hora do Povo