Há alguns dias atrás, Alexandre Neves Rosendo, membro da equipe do Solidaiedade a Coreia Popular. teve a oportunidade de dar uma entrevista a um amigo jornalista por ocasião de nossa viagem à RDP da Coréia. Postamo-la aqui para os interessados.
Da redação
Aurelio Moraes: Como surgiu o convite para vocês visitarem o país e quanto tempo durou a visita?
Alexandre Neves: Fomos convidados para visitar a RDP da Coréia em setembro do ano passado, durante uma cerimônia na qual participamos para comemorar os 62 anos da fundação da República democrática e popular na parte norte da Coréia. Todos os gastos da viagem ficaram por conta da Associação Coreana de Cientistas Sociais: Alimentação, gasolina, hotel, etc. etc. Entramos na Coréia do Norte no dia 9 de abril de 2011 e saímos no dia 19 de abril de 2011 (10 dias). Foi uma viagem que valeu muito a pena pelo fato de termos tido a liberdade de ver o que a totalidade dos turistas não poderia ver: Fábricas, granjas cooperativas, o campo, escolas, universidade, hospitais, estabelecimentos, etc.
A. M.: Quais foram suas primeiras impressões ao chegar na Coréia do Norte?
A. N..: A primeira impressão que tivemos quando pisamos pela primeira vez na Coréia é de ver um país que passa por dificuldades e se esforça com todo o ímpeto para superá-las. A falta de fertilidade do solo coreano e o simples fato de ele se encontrar congelado durante a maior parte dos anos leva a população a aproveitarem cada cm² de terra fértil. Mesmo no meio do aeroporto, nas pistas onde passavam os aviões, encontravam-se pequenas plantações de arroz. Porém, mesmo com todas as dificuldades, pudemos presenciar um país de se orgulha de ter a capital mais limpa do mundo. O sistema universal e gratuito de educação compulsória de 11 anos, estabelecido em 1972, além de um dos mais modernos sistemas de saúde do mundo também é motivo de orgulho para seus cidadãos. Um país no qual se conta nos dedos a quantidade de pessoas sem moradia em pleno bloqueio deve ser um exemplo a ser seguido.
A. M.: É bem conhecida uma série de reportagens da jornalista Ana Paula Padrão, para o Jornal do SBT, sobre a Coréia do Norte. Você percebeu diferenças entre a realidade que viu lá e o que foi mostrado nas reportagens?
A.N..: Sinceramente, não pudemos perceber muita diferença entre a realidade mostrada naquele documentário e o que percebemos no país. O documentário feito pela jornalista Ana Paula Padrão mostra uma Coréia muito bonita, com um povo bem-vestido, alegre. O grande problema é que uma visão preconceituosa e idealista faz com que a mesma enxergue pêlo em ovo. Tudo vira motivo para se falar em “totalitarismo”. Fala-se no “totalitarismo” no sorriso das pessoas, no “totalitarismo” presente nas danças de ginástica de massas... É melhor focar na realidade objetiva do que se apegar a conceitos vazios, abstratos.
A.M.: A imprensa brasileira na sua opinião distorce a realidade norte-coreana?
A.N.: A imprensa brasileira, subserviente aos ditames da imprensa sul-coreana e norte-americana, não só distorce como também mente de forma aberta acerca da Coréia Socialista e da situação na Península Coreana. Creio que se passarmos analisando cada mentira que a imprensa publica sobre o país, não sairia daqui tão cedo. De qualquer forma, tentarei ser sistemático: No ano passado, foi publicada uma matéria na Folha de São Paulo segundo a qual as mulheres norte-coreanas teriam sido proibidas de usar calças. Mentira, praticamente todas elas usavam quando estivemos lá; A mentira mais famosa, creio eu, foi aquela segundo a qual a Coréia do Norte teria falsificado o resultado do jogo do Brasil e teria sido posta como vencedora. Mentira. Todos os norte-coreanos sabiam que o Brasil tinha ganhado e aquele vídeo que circulou pela Internet era falso – afinal, a tal jornalista coreana que supostamente anuncia a “vitória" norte-coreana, na prática, não fala nada relacionado a futebol. Mentiras como essas divulgadas em larga escala (que apareceram inclusive no jornal das 8) são de grande desgosto para qualquer pessoa que tenha compromissos com a verdade.
A.M..: Quais os costumes da sociedade de lá mais curiosos e mais diferentes dos nossos?
A.N..: A cultura coreana é diametralmente diferente da cultura brasileira. Talvez isso explique o porquê de a maioria da dita ‘esquerda’ nutrir um ódio pequeno-burguês pela Coréia do Norte, mesmo que esta tenha realizado as tarefas fundamentais de um Estado Proletário: A industrialização pesada, a mecanização da agricultura e o conseqüente avanço no desenvolvimento das forças produtivas, etc etc.
No mais, em termos culturais, o que me chamou mais atenção é o respeito que todos têm pela figura da ‘liderança’. A Coréia, tendo sido por milênios uma sociedade que tinha como base a família e, no centro desta, a figura paterna ou materna, explica historicamente essa reverência. Lembro-me que, quando chegamos em Pyongyang, nosso camarada anfitrião So Ryun So disse-nos que seria necessário um líder à frente da delegação. Como não tínhamos pensado nisso antes, botamos o camarada Gabriel à frente da delegação por questões meramente formais, além de ser o mais velho entre nós. Para nosso amigo Ryung So, não fazia sentido a forma arbitrária como a liderança tinha sido escolhida. Enfim, foram coisas que pudemos perceber ao longo do convívio com camaradas coreanos.
Outra coisa que pude perceber é a forma camaradesca, familiar e respeitosa como os coreanos se tratam. Na presença de nosso anfitrião-guia, o que mais ouvíamos eram palavras como “So Dongji” (camarada So, em português). Os coreanos também dão muita atenção à questão das boas maneiras mais do que os outros povos. Lembro-me que, no nosso primeiro dia no hotel, foi feito um jantar de confraternização entre todas as delegações. Enquanto todos se portavam como verdadeiros gentlemen, fazíamos questão de mostrar a todos nossas maneiras vikings de nos comportar à mesa, como quem come um churrasquinho de gato num clássico Corinthians X Palmeiras ou como a peãozada que bota dois quilos de arroz e feijão no mesmo prato.
Por uma questão de respeito, um camarada sempre serve cerveja ao outro quando está à mesa. Se bem que isso poderia ser aplicado aqui no Brasil também... Não seria tão distante culturalmente como venerar um líder.
A.M.: Como está a questão do embargo econômico ao país? Vocês sentiram isto na prática?
A.N.: O bloqueio é uma forma de estrangular o sistema democrático-popular estabelecido na parte norte da Coréia. Consiste em realizar o bloqueio total no setor tecnológico e de telecomunicações. Congelou todos os fundos que o país tinha depositado em bancos estrangeiros e pessoas de outros países que visitam a Coréia do Norte não podem sacar dinheiro em moedas estrangeiras. Nos anos 90, quando o país passou por desastres naturais gravíssimos que destruíram boa parte da agricultura (e, também, não tinham como importar os alimentos como forma de suprir a demanda interna, haja visto que havia perdido quase todos os mercados depois da queda da URSS) e foi obrigado a recorrer a organismos internacionais, boa parte da ajuda foi sancionada pelos imperialistas sob o pretexto de que a Coréia estaria levando a cabo um programa nuclear (ironicamente, os norte-americanos até hoje não foram sancionados pelo fato de mais de metade dos gastos mundiais com armamentos vir por parte de seu país).
O bloqueio também afeta diretamente o setor de telecomunicações. Não é possível, por exemplo, realizar ligações internacionais diretamente da Coréia do Norte. Para passar por cima disso, o governo foi obrigado a fazer um acordo com uma empresa tailandesa e, através dela, possibilitar a comunicação com outros países. Todo esse processo, porém, encarece muito as ligações. Quando ligamos para o Brasil e falamos por menos de três minutos com nossos familiares, tivemos que pagar US$30,00 pelas ligações.
A.M.: Tecnologia: O norte-coreano medio tem acesso à celular, internet, computador etc?
A.N..: A Coréia do Norte pôde ter acesso à tecnologia dos celulares 3G pela primeira vez em 2008, através de uma joint-venture com uma empresa egípcia. Em termos proporcionais, é o país do mundo com maior acesso à tecnologia. Porém, em termos brutos, o número de usuários ainda é pequeno. Porém, a tecnologia está se espalhando. De acordo com estatísticas de 2010, o número de usuários na RDP da Coréia inteira era de 302 mil. A tendência é que esse número aumente, como pudemos perceber em nossa viagem vários coreanos nas ruas usando celulares avançados. A internet existe mas, por conta do bloqueio, ainda é muito precária (não existe banda larga para internet, apenas discada). A tecnologia mais comum nesse sentido lá é a Intranet, semelhante à Internet mas restrita ao território norte-coreano. Como forma de evitar espionagens ou ações de elementos subversivos, a Intranet só pode ser acessada em locais públicos, como estabelecimentos que possuam tal tecnologia.
A.M.: A liberdade de imprensa lá é bastante criticada. As críticas procedem? Lá existe imprensa pluralista como a nossa?
A.N.: É muito complicado falar em “liberdade de expressão” usando termos positivistas, sem definir o que seria “liberdade” ou o que seria “expressão”. A imprensa norte-coreana é controlada pelo governo, em contraste com a imprensa de países capitalistas que está concentrada em conglomerados. Não é possível especular se existiria ou não a possibilidade de se criar um jornal contra o governo ou contra o comunismo, já que não existe nenhuma lei que o proíba. De qualquer forma, a ideologização de toda a sociedade já foi levada a cabo há décadas lá e não encontramos qualquer oposição contra o governo (o que não impede que esta exista, de qualquer forma).
A.M.: Muita gente costuma falar sobre a pobreza na Coréia do Norte. Existe miséria no país, como costuma sair na mídia ou na sua opinião é uma interpretação equivocada da realidade norte-coreana?
A.N.: É necessário, antes de tudo, destacar que “pobreza” é um conceito relativo. Durante os dez dias que estivemos em Pyongyang, não encontramos um único morador de rua e/ou semelhantes. No campo, encontramos cidades sem sombra dúvidas muito menos desenvolvidas que Pyongyang, mas em nenhuma existia “miséria” nos termos como estamos acostumados a tratar em nosso país. Pode-se até falar em pobreza, mas jamais em miséria. O que vimos no máximo de pobreza foi algumas casas no campo, mal-pintadas e visivelmente degradadas. Todas, porém, tinham plantações de arroz, maiz, batata ou criação de galinhas, por exemplo. Não que essa vida simples seja o norte maior que o socialismo pode alcançar. Porém, para um país que tem boa parte do desenvolvimento de suas forças produtivas freado por conta do bloqueio, é muito impressionante. Sem palavras para descrever.
A.M.: Como é a indústria da Coréia do Norte? Visitaram alguma fábrica?
A.N.: Já no início dos anos 70, a Coréia do Norte possuía um dos maiores parques industriais do mundo. Tratava-se de um países socialistas que mais exportavam (a partir de 1965 já possuía uma balança comercial favorável em relação à URSS, a maior economia do antigo bloco soviético) e cumpriam papel de relevo no abastecimento desse mesmo bloco. Logo após a Guerra civil, o Partido do Trabalho da Coréia levou a cabo o Primeiro Plano Trienal 1954-1956 para reconstruir a economia não da forma unilateral como ela se encontrava antes da guerra (quer dizer, uma economia colonial voltava para o abastecimento da metrópole, que possuía ramos muito desenvolvidos em contraste com vários outros atrasados, caracterizando uma economia muito deformada), mas para dar a ela novas bases para a construção de uma nova economia socialista. Kim Il Sung, principal líder da RDPC, sugeriu que fosse levado a cabo o projeto de incrementar o desenvolvimento da indústria leve e rápida tendo como base o incremento, também, da indústria pesada. Rendendo agradecimentos às democracias populares que ajudaram na reconstrução econômica e sendo beneficiada por bilhões de toneladas de recursos minareis fundamentais na industrialização (a Coréia do Norte possui metade das reservas mundiais de carvão), a partir de 1970 a Coréia do Norte já configurava-se como um país industrial-chave em siderurgia, indústria química, indústria de bens de consumo, de materiais de construção, etc. Depois do triste retrocesso pelo qual passou nos anos 90, a indústria já está se recuperando e está recheada de metas para o ano de 2012. Visitamos uma fábrica de alimentos em Pyongyang e pudemos ver uma indústria altamente mecanizada e que atendia às demandas internas (já que, em termos de distribuição, dedicava-se ao abastecimento apenas da capital, Pyongyang). Produzia 2 mil garrafas de refrigerante por dia; 10 mil litros de licor por mês; 2500 picolés por hora; 3 toneladas de balas por dia e 3 toneladas de pão por dia.
A.M.: Fala-se muito da impossibilidade de consumo no país. Pelo o que você viu, o norte-coreano médio pouco consome?
A.N.: Creio que isso demanda uma análise mais radical de como se encontra o estado da economia norte-coreana nos dias de hoje. É difícil falar do consumo do cidadão médio tendo como base de análise a produtividade de uma única fábrica que sequer produz todos os bens necessários para a existência do indivíduo. Porém, levando em conta o salário mínimo norte-coreano (2 mil wons) e os baixos preços dos produtos e dos aluguéis (estes últimos não ultrapassam 1% do salário nominal dos trabalhadores), além da não-existência de qualquer tipo de imposto e de serviços como educação e saúde 100% gratuitos, podemos especular mais ou menos como se encontra o poder de consumo do norte-coreano regular. Aceito sugestões.
A.M.: Ainda falando sobre cultura, como ela é valorizada no país?
A.N.: A cultura é, de longe, o que o povo coreano mais valoriza. É usada como uma forma de educar os cidadãos e as novas gerações no espírito do socialismo e do comunismo para que se tornem trabalhadores que lutem pelo progresso do país. O coletivismo está presente entre os coreanos mesmo das formas mais simples: É comum ver todos se dedicarem a plantar flores ou decorar a cidade nos dias de descanso, ou limpá-la a qualquer momento. Todos se tratam de forma camaradesca, como uma família. Talvez isso explique a importância que a Idéia Juche dê ao aspecto ideológico na construção socialista.
Da redação
Aurelio Moraes: Como surgiu o convite para vocês visitarem o país e quanto tempo durou a visita?
Alexandre Neves: Fomos convidados para visitar a RDP da Coréia em setembro do ano passado, durante uma cerimônia na qual participamos para comemorar os 62 anos da fundação da República democrática e popular na parte norte da Coréia. Todos os gastos da viagem ficaram por conta da Associação Coreana de Cientistas Sociais: Alimentação, gasolina, hotel, etc. etc. Entramos na Coréia do Norte no dia 9 de abril de 2011 e saímos no dia 19 de abril de 2011 (10 dias). Foi uma viagem que valeu muito a pena pelo fato de termos tido a liberdade de ver o que a totalidade dos turistas não poderia ver: Fábricas, granjas cooperativas, o campo, escolas, universidade, hospitais, estabelecimentos, etc.
A. M.: Quais foram suas primeiras impressões ao chegar na Coréia do Norte?
A. N..: A primeira impressão que tivemos quando pisamos pela primeira vez na Coréia é de ver um país que passa por dificuldades e se esforça com todo o ímpeto para superá-las. A falta de fertilidade do solo coreano e o simples fato de ele se encontrar congelado durante a maior parte dos anos leva a população a aproveitarem cada cm² de terra fértil. Mesmo no meio do aeroporto, nas pistas onde passavam os aviões, encontravam-se pequenas plantações de arroz. Porém, mesmo com todas as dificuldades, pudemos presenciar um país de se orgulha de ter a capital mais limpa do mundo. O sistema universal e gratuito de educação compulsória de 11 anos, estabelecido em 1972, além de um dos mais modernos sistemas de saúde do mundo também é motivo de orgulho para seus cidadãos. Um país no qual se conta nos dedos a quantidade de pessoas sem moradia em pleno bloqueio deve ser um exemplo a ser seguido.
A. M.: É bem conhecida uma série de reportagens da jornalista Ana Paula Padrão, para o Jornal do SBT, sobre a Coréia do Norte. Você percebeu diferenças entre a realidade que viu lá e o que foi mostrado nas reportagens?
A.N..: Sinceramente, não pudemos perceber muita diferença entre a realidade mostrada naquele documentário e o que percebemos no país. O documentário feito pela jornalista Ana Paula Padrão mostra uma Coréia muito bonita, com um povo bem-vestido, alegre. O grande problema é que uma visão preconceituosa e idealista faz com que a mesma enxergue pêlo em ovo. Tudo vira motivo para se falar em “totalitarismo”. Fala-se no “totalitarismo” no sorriso das pessoas, no “totalitarismo” presente nas danças de ginástica de massas... É melhor focar na realidade objetiva do que se apegar a conceitos vazios, abstratos.
A.M.: A imprensa brasileira na sua opinião distorce a realidade norte-coreana?
A.N.: A imprensa brasileira, subserviente aos ditames da imprensa sul-coreana e norte-americana, não só distorce como também mente de forma aberta acerca da Coréia Socialista e da situação na Península Coreana. Creio que se passarmos analisando cada mentira que a imprensa publica sobre o país, não sairia daqui tão cedo. De qualquer forma, tentarei ser sistemático: No ano passado, foi publicada uma matéria na Folha de São Paulo segundo a qual as mulheres norte-coreanas teriam sido proibidas de usar calças. Mentira, praticamente todas elas usavam quando estivemos lá; A mentira mais famosa, creio eu, foi aquela segundo a qual a Coréia do Norte teria falsificado o resultado do jogo do Brasil e teria sido posta como vencedora. Mentira. Todos os norte-coreanos sabiam que o Brasil tinha ganhado e aquele vídeo que circulou pela Internet era falso – afinal, a tal jornalista coreana que supostamente anuncia a “vitória" norte-coreana, na prática, não fala nada relacionado a futebol. Mentiras como essas divulgadas em larga escala (que apareceram inclusive no jornal das 8) são de grande desgosto para qualquer pessoa que tenha compromissos com a verdade.
A.M..: Quais os costumes da sociedade de lá mais curiosos e mais diferentes dos nossos?
A.N..: A cultura coreana é diametralmente diferente da cultura brasileira. Talvez isso explique o porquê de a maioria da dita ‘esquerda’ nutrir um ódio pequeno-burguês pela Coréia do Norte, mesmo que esta tenha realizado as tarefas fundamentais de um Estado Proletário: A industrialização pesada, a mecanização da agricultura e o conseqüente avanço no desenvolvimento das forças produtivas, etc etc.
No mais, em termos culturais, o que me chamou mais atenção é o respeito que todos têm pela figura da ‘liderança’. A Coréia, tendo sido por milênios uma sociedade que tinha como base a família e, no centro desta, a figura paterna ou materna, explica historicamente essa reverência. Lembro-me que, quando chegamos em Pyongyang, nosso camarada anfitrião So Ryun So disse-nos que seria necessário um líder à frente da delegação. Como não tínhamos pensado nisso antes, botamos o camarada Gabriel à frente da delegação por questões meramente formais, além de ser o mais velho entre nós. Para nosso amigo Ryung So, não fazia sentido a forma arbitrária como a liderança tinha sido escolhida. Enfim, foram coisas que pudemos perceber ao longo do convívio com camaradas coreanos.
Outra coisa que pude perceber é a forma camaradesca, familiar e respeitosa como os coreanos se tratam. Na presença de nosso anfitrião-guia, o que mais ouvíamos eram palavras como “So Dongji” (camarada So, em português). Os coreanos também dão muita atenção à questão das boas maneiras mais do que os outros povos. Lembro-me que, no nosso primeiro dia no hotel, foi feito um jantar de confraternização entre todas as delegações. Enquanto todos se portavam como verdadeiros gentlemen, fazíamos questão de mostrar a todos nossas maneiras vikings de nos comportar à mesa, como quem come um churrasquinho de gato num clássico Corinthians X Palmeiras ou como a peãozada que bota dois quilos de arroz e feijão no mesmo prato.
Por uma questão de respeito, um camarada sempre serve cerveja ao outro quando está à mesa. Se bem que isso poderia ser aplicado aqui no Brasil também... Não seria tão distante culturalmente como venerar um líder.
A.M.: Como está a questão do embargo econômico ao país? Vocês sentiram isto na prática?
A.N.: O bloqueio é uma forma de estrangular o sistema democrático-popular estabelecido na parte norte da Coréia. Consiste em realizar o bloqueio total no setor tecnológico e de telecomunicações. Congelou todos os fundos que o país tinha depositado em bancos estrangeiros e pessoas de outros países que visitam a Coréia do Norte não podem sacar dinheiro em moedas estrangeiras. Nos anos 90, quando o país passou por desastres naturais gravíssimos que destruíram boa parte da agricultura (e, também, não tinham como importar os alimentos como forma de suprir a demanda interna, haja visto que havia perdido quase todos os mercados depois da queda da URSS) e foi obrigado a recorrer a organismos internacionais, boa parte da ajuda foi sancionada pelos imperialistas sob o pretexto de que a Coréia estaria levando a cabo um programa nuclear (ironicamente, os norte-americanos até hoje não foram sancionados pelo fato de mais de metade dos gastos mundiais com armamentos vir por parte de seu país).
O bloqueio também afeta diretamente o setor de telecomunicações. Não é possível, por exemplo, realizar ligações internacionais diretamente da Coréia do Norte. Para passar por cima disso, o governo foi obrigado a fazer um acordo com uma empresa tailandesa e, através dela, possibilitar a comunicação com outros países. Todo esse processo, porém, encarece muito as ligações. Quando ligamos para o Brasil e falamos por menos de três minutos com nossos familiares, tivemos que pagar US$30,00 pelas ligações.
A.M.: Tecnologia: O norte-coreano medio tem acesso à celular, internet, computador etc?
A.N..: A Coréia do Norte pôde ter acesso à tecnologia dos celulares 3G pela primeira vez em 2008, através de uma joint-venture com uma empresa egípcia. Em termos proporcionais, é o país do mundo com maior acesso à tecnologia. Porém, em termos brutos, o número de usuários ainda é pequeno. Porém, a tecnologia está se espalhando. De acordo com estatísticas de 2010, o número de usuários na RDP da Coréia inteira era de 302 mil. A tendência é que esse número aumente, como pudemos perceber em nossa viagem vários coreanos nas ruas usando celulares avançados. A internet existe mas, por conta do bloqueio, ainda é muito precária (não existe banda larga para internet, apenas discada). A tecnologia mais comum nesse sentido lá é a Intranet, semelhante à Internet mas restrita ao território norte-coreano. Como forma de evitar espionagens ou ações de elementos subversivos, a Intranet só pode ser acessada em locais públicos, como estabelecimentos que possuam tal tecnologia.
A.M.: A liberdade de imprensa lá é bastante criticada. As críticas procedem? Lá existe imprensa pluralista como a nossa?
A.N.: É muito complicado falar em “liberdade de expressão” usando termos positivistas, sem definir o que seria “liberdade” ou o que seria “expressão”. A imprensa norte-coreana é controlada pelo governo, em contraste com a imprensa de países capitalistas que está concentrada em conglomerados. Não é possível especular se existiria ou não a possibilidade de se criar um jornal contra o governo ou contra o comunismo, já que não existe nenhuma lei que o proíba. De qualquer forma, a ideologização de toda a sociedade já foi levada a cabo há décadas lá e não encontramos qualquer oposição contra o governo (o que não impede que esta exista, de qualquer forma).
A.M.: Muita gente costuma falar sobre a pobreza na Coréia do Norte. Existe miséria no país, como costuma sair na mídia ou na sua opinião é uma interpretação equivocada da realidade norte-coreana?
A.N.: É necessário, antes de tudo, destacar que “pobreza” é um conceito relativo. Durante os dez dias que estivemos em Pyongyang, não encontramos um único morador de rua e/ou semelhantes. No campo, encontramos cidades sem sombra dúvidas muito menos desenvolvidas que Pyongyang, mas em nenhuma existia “miséria” nos termos como estamos acostumados a tratar em nosso país. Pode-se até falar em pobreza, mas jamais em miséria. O que vimos no máximo de pobreza foi algumas casas no campo, mal-pintadas e visivelmente degradadas. Todas, porém, tinham plantações de arroz, maiz, batata ou criação de galinhas, por exemplo. Não que essa vida simples seja o norte maior que o socialismo pode alcançar. Porém, para um país que tem boa parte do desenvolvimento de suas forças produtivas freado por conta do bloqueio, é muito impressionante. Sem palavras para descrever.
A.M.: Como é a indústria da Coréia do Norte? Visitaram alguma fábrica?
A.N.: Já no início dos anos 70, a Coréia do Norte possuía um dos maiores parques industriais do mundo. Tratava-se de um países socialistas que mais exportavam (a partir de 1965 já possuía uma balança comercial favorável em relação à URSS, a maior economia do antigo bloco soviético) e cumpriam papel de relevo no abastecimento desse mesmo bloco. Logo após a Guerra civil, o Partido do Trabalho da Coréia levou a cabo o Primeiro Plano Trienal 1954-1956 para reconstruir a economia não da forma unilateral como ela se encontrava antes da guerra (quer dizer, uma economia colonial voltava para o abastecimento da metrópole, que possuía ramos muito desenvolvidos em contraste com vários outros atrasados, caracterizando uma economia muito deformada), mas para dar a ela novas bases para a construção de uma nova economia socialista. Kim Il Sung, principal líder da RDPC, sugeriu que fosse levado a cabo o projeto de incrementar o desenvolvimento da indústria leve e rápida tendo como base o incremento, também, da indústria pesada. Rendendo agradecimentos às democracias populares que ajudaram na reconstrução econômica e sendo beneficiada por bilhões de toneladas de recursos minareis fundamentais na industrialização (a Coréia do Norte possui metade das reservas mundiais de carvão), a partir de 1970 a Coréia do Norte já configurava-se como um país industrial-chave em siderurgia, indústria química, indústria de bens de consumo, de materiais de construção, etc. Depois do triste retrocesso pelo qual passou nos anos 90, a indústria já está se recuperando e está recheada de metas para o ano de 2012. Visitamos uma fábrica de alimentos em Pyongyang e pudemos ver uma indústria altamente mecanizada e que atendia às demandas internas (já que, em termos de distribuição, dedicava-se ao abastecimento apenas da capital, Pyongyang). Produzia 2 mil garrafas de refrigerante por dia; 10 mil litros de licor por mês; 2500 picolés por hora; 3 toneladas de balas por dia e 3 toneladas de pão por dia.
A.M.: Fala-se muito da impossibilidade de consumo no país. Pelo o que você viu, o norte-coreano médio pouco consome?
A.N.: Creio que isso demanda uma análise mais radical de como se encontra o estado da economia norte-coreana nos dias de hoje. É difícil falar do consumo do cidadão médio tendo como base de análise a produtividade de uma única fábrica que sequer produz todos os bens necessários para a existência do indivíduo. Porém, levando em conta o salário mínimo norte-coreano (2 mil wons) e os baixos preços dos produtos e dos aluguéis (estes últimos não ultrapassam 1% do salário nominal dos trabalhadores), além da não-existência de qualquer tipo de imposto e de serviços como educação e saúde 100% gratuitos, podemos especular mais ou menos como se encontra o poder de consumo do norte-coreano regular. Aceito sugestões.
A.M.: Ainda falando sobre cultura, como ela é valorizada no país?
A.N.: A cultura é, de longe, o que o povo coreano mais valoriza. É usada como uma forma de educar os cidadãos e as novas gerações no espírito do socialismo e do comunismo para que se tornem trabalhadores que lutem pelo progresso do país. O coletivismo está presente entre os coreanos mesmo das formas mais simples: É comum ver todos se dedicarem a plantar flores ou decorar a cidade nos dias de descanso, ou limpá-la a qualquer momento. Todos se tratam de forma camaradesca, como uma família. Talvez isso explique a importância que a Idéia Juche dê ao aspecto ideológico na construção socialista.