terça-feira, 3 de abril de 2018
Mais uma interpretação: O significado da visita de Kim Jong Un à China
A visita do dirigente coreano Kim Jong Un à China pegou a comunidade internacional de surpresa. A entrada às 15:00 horas do dia 26 de março de um trem blindado da Coreia Popular na estação Beijing Railway, cujas informações não estavam listadas no painel, despertou intensa curiosidade.
A presença da guarda honra do Exército de Libertação Popular, de uma fileira de carros VIP e de fortes medidas de segurança não deixaram dúvidas de que se tratava de uma visita de um alto dirigente da Coreia Popular. A mídia japonesa foi a primeira a noticiar que havia chegado a Pequim um trem de 21 vagões, semelhante ao utilizado por Kim Jong Il em 2011 por ocasião de sua visita à Rússia. Inicialmente, a mídia internacional especulou tratar-se da irmã de Kim Jong Un, Kim Yo-Jong, devido sua participação nas Olimpíadas de Inverno em Seul, no início deste ano. Contudo, devido ao esquema de segurança elevado por toda a capital chinesa, rapidamente chegou-se à conclusão de que tratava-se do máximo dirigente coreano, Kim Jong Un.
Apesar dos rumores terem seguido por alguns dias, as fotos e comentários oficiais só foram liberados após à conclusão do que foi denominado como uma visita informal, ocorrida entre os dias 25 e 28 de março. Em diversas notícias publicadas nas mídias estatais chinesas, foi explicado que a visita foi fruto de um convite realizado pelo Secretário Geral do Partido Comunista da China, Xi Jinping. Por sua vez, a resposta positiva do lado coreano reveste-se de um significado histórico sem precedentes, pois trata-se da primeira visita a um país estrangeiro realizada por Kim Jong Un desde que assumiu a liderança do Partido do Trabalho da Coreia.
A escolha da China não foi mero acaso. Esta visita tem o objetivo de melhorar as relações bilaterais entre os dois países comunistas que, desde a escalada de testes por parte da RPDC, vinha se deteriorando em um ritmo alarmante. Mais importante, este encontro trouxe Pequim para o epicentro da questão nuclear na península coreana, contrariando os analistas que até então viam na ausência da China no processo de negociação de um possível encontro entre Donald Trump e Kim Jong Un, uma grande derrota diplomática às aspirações chinesas de se tornar uma potência regional e global capaz de mediar conflitos.
Embora esta visita tenha aparecido de surpresa para muitos, no dia 18 de março, o jornal Global Times, periódico filiado ao Diário do Povo e especializado em questões internacionais, publicou um editorial intitulado “Nada deve vir entre a China e a Coreia Popular”, onde sinalizou uma aproximação entre os dois países e um prenúncio do encontro.
Embora seja impossível especular sobre o conteúdo exato do que foi conversado exatamente entre os dois mandatários comunistas, podemos enxergar neste editorial uma síntese da perspectiva chinesa sobre a questão. O ponto de partida do texto é pontuar o fato de que a opinião pública internacional é majoritariamente influenciada por informações da mídia ocidental, sul-coreana e japonesa. Naturalmente, isto influencia na percepção geral da questão e dificulta seu entendimento frente ao senso comum.
A posição da China é clara: apesar de ser contra o programa nuclear da RPDC, não admitirá a possibilidade de guerra e caos na região. Além disso, a República Popular da China reafirma constantemente seu princípio de não intervir em assuntos internos de outros países. Portanto, é direito da RPDC manter o seu sistema político.
A natureza da relação entre os dois países asiáticos, explica o editorial, difere da relação entre Washington e Seul. A China, ao contrário dos Estados Unidos, não mantém tropas em território coreano. Pequim e Pyongyang possuem uma relação de igualdade e respeito mútuo. O argumento amplamente difundindo de que a China possui a habilidade de controlar a Coreia Popular é uma falácia. É em cima desta afirmativa que o editorial insinua que há interesses de terceiros em criar e estimular conflitos entre os dois países irmãos.
Neste sentido, a conclusão do editorial publicado sete dias antes da visita de Kim Jong Un, nos oferece uma janela precisa para o quadro teórico que pautou o encontro: Para a China, ajudar na mediação é favorável à estratégia de Pequim em consolidar-se como potência regional com legitimidade para executar manobras nos assuntos do nordeste asiático. Para a Coreia Popular, argumenta o editorial, seria difícil e perigoso lidar com Seul, Washington e Tóquio sozinha. O apoio da China poderá neutralizar muitos riscos e contrabalancear a correlação forças.
A mídia internacional reagiu publicando uma enxurrada de artigos sobre a natureza do encontro, em sua maioria fazendo especulações sobre o papel da China nos futuros encontros de Kim Jong Un com mandatários estrangeiros e nas negociações referentes à questão nuclear na península coreana. Embora seja cedo para fazer afirmações ou arriscar previsões, é seguro afirmar que qualquer conflito de interesses na questão nuclear entre a Coreia Popular e a China jamais romperá a aliança estratégica entre os dois países.
Gaio Doria, mestre em economia pela Universidade do Povo da China onde atualmente faz o doutorado; militante do PCdoB, colaborador da Comissão de Política e Relações Internacionais.