Origem da divisão das Coréias
A Coréia é uma das nações mais antigas do mundo. Suas origens datam 3000 aC, ainda que o primeiro reino unificado por toda a península fosse um regime feudal, a dinastia Koryo, que governou os destinos da Coréia por 500 anos. No final do século XIV, uma nova dinastia - os Ri- tomaram o poder e governaram a Coréia durante 600 anos. Para entendermos esse longo período devemos examinar dois momentos históricos: uma no início e outra no final. O primeiro momento foi a invasão japonesa em 1592, conhecida na Coréia como Guerra Patriótica Imjin, que terminou com uma vitória sobre os invasores da Coréia, após sete anos de luta, mas que custaram a destruição completa do país.
A segunda fase ocorreu entre dezembro de 1884 e 1905. A Coréia era então um país predominantemente feudal e atrasado. Na Ásia, existia a disputa imperialista entre o velho império czarista e o Japão Meiji. Ambas as potências tinham ambições sobre a Coréia e a Manchuria. Em dezembro de 1884, ocorre um golpe de Estado na Coréia. O golpe reivindicava uma modernização capitalista das estruturas feudais do país. No entanto, o caos interno, foi usado pelo Japão como argumento para invadir a Coréia, a qual foi respondida por uma revolta camponesa que se espalha por grande parte do país. O Japão retirou suas tropas da Coréia, mas algum tempo depois (1905) volta a invadir definitivamente a Península, depois de derrotar militarmente o seu rival na região: Rússia. Começa então um brutal período de 40 anos de regime colonial.
O regime colonial japonês é um dos exemplos mais selvagens da destruição imperialista de uma nação. O Japão negou ao povo coreano o direito pela sua identidade nacional, mediante a destruição de qualquer evidência histórica que servisse para a construção de uma identidade nacional própria. Isso significava a destruição de templos coreanos, das tumbas dos reis coreanos mais importantes, etc.
A língua coreana foi marginalizada da vida pública e da educação e se iniciaram políticas de “renovação do sobrenome” (forçava a população coreana a “niponizar” o seu sobrenome) e de trocar os nomes da cidade do país. Toda a Coréia foi colocada a serviço do Império Japonês, transformando suas estruturas econômicas para torná-la dependente. Mais de 90% do intercâmbio comercial coreano se dava com o Japão. Além disso, milhões de coreanos foram levados em condições mais ou menos forçados a trabalhar no Japão nos trabalhos mais duros, enquanto toda a Península Coreana se transformava em uma gigantesca fábrica de armas para a invasão japonesa da China.
Os coreanos não só produziram as balas com que seus invasores executavam patriotas e revolucionários, eles também eram forçados a servir no Exército Imperial Japonês.
Mulheres coreanas também foram forçadas a servir no Exército Imperial, mas não como soldadas, mas como prostitutas e escravas sexuais. Estima-se que em 40 anos de domínio colonial, cerca de 200.000 mulheres coreanas passaram pelos quartéis japoneses.
A expectativa de vida na Coréia era de 38,4 anos e a mortalidade infantil de 204%. O analfabetismo era generalizado e somente 4,6% das crianças em idade escolar estavam matriculadas.
O acesso ao ensino secundário seguia critérios classistas, enquanto os coreanos estavam vetados do ensino superior. Em 1945, somente 9 pessoas em toda a Coréia possuíam um diploma universitário.
Frente a essa situação, existia uma oposição ativa, porém fragmentada. O imperialismo japonês fez manobras cuidados para invadir a Coréia. A velha elite coreana – a nobreza, os monarcas e os proprietários de terra – não lutaram contra os japoneses; os dois primeiros, acreditando que seus privilégios se manteriam sob novo regime (O Japão não eliminou automaticamente as instituições coreanas, mas sim tentou ganhar tempo com falsas negociações, enquanto suas tropas tomavam o controle da Península e desarmavam o Exército Coreano). Quando o Japão aboliu a monarquia coreana, já não existiam as tradicionais bases de seu poder, o que impediu que se exercesse algum tipo de resistência.
Os proprietários de terra, por outro lado, continuaram exercendo um grande poder sobre a agricultura coreana, ainda que as melhores terras foram expropriadas por latifundiários e oficias do exército japonês. Com as velhas elites fora do jogo,
a oposição se dividiu em três pilares:
O nacionalismo, geralmente ligado a antigos militares do Exército Coreano. Seu poder foi se debilitando com o passar do tempo, pela falta de uma base social que a apoiasse.
A oposição burguesa, representada por um governo coreano no exílio (Shangai) e figuras como Sygmum Rhee, coreano que vivia na California. Ambas tendências representavam uma oposição que buscava a pressão internacional e a submissão a grandes potências, junto ao próprio Japão (um estatuto de autonomia) ou aos Estados Unidos. Não tinham uma presença na Coréia.
A oposição comunista e seus aliados, a única força com presença real dentro da Coréia. A guerrilha emcabeçada por Kim Il Sung era a vanguarda das forças comunistas dentro da Coréia, depois do desaparecimento do Partido Comunista da Coréia, em 1928.
A derrota definitiva do Japão se deu em 1945. Até o paralelo de 38, a guerrilha e as tropas soviéticas ocuparam as principais cidades.
Quando os guerrilheiros e os soviéticos libertaram esses territórios, se depararam com um novo mecanismo de poder, que estavam sendo criados pelo próprio povo coreano: o comitê popular. Os guerrilheiros viram o potencial desse novo tipo de organização popular e começaram a estendê-lo por todas as cidades e vilarejos.
As tropas soviéticas estacionaram no paralelo 38, devido o acordo que haviam feito com os Estados Unidos para desarmar o Exército Japonês. Mas, até então, o exército norte-americano ainda estava longe da Coréia e só chegariam ao país três semanas depois de sua libertação.
Na teoria, a presença de ambos os exércitos (norte-americano e soviético) só tinha um sentido: libertar a Coréia, criar as condições para que os coreanos pudessem governar-se a si mesmos - através de um processo de democratização e eleições gerais para todo o país – e retirar-se.
No entanto, os Estados Unidos chegou à Coréia quando sua presença já era irrelevante para a libertação do país e seu propósito nunca foi a democratização da Coréia. Quando os norte-americanos chegaram, Coréia do Sul era um caldeirão social, aonde os comitês populares haviam-se estendido de forma autônoma e controlavam a situação. Os Estados Unidos reprimiu os comitês e devolveu a seus postos os antigos gendarmes do regime colônia. Uma nova ditadura havia nascido, na metade do país que queria ser independente e permanecer unido.
Enquanto a União Soviética retirava suas últimas tropas da Coréia em 1948, os Estados Unidos ainda continuam com suas tropas em território coreano até os dias de hoje. Coréia do Sul se mantém ainda hoje como um regime sem legitimidade histórica e produto da ingerência política imperialista na Ásia Oriental.
Portanto, a Revolução na Coréia – que nasceu como uma luta por independência – é um processo inconcluso: a metade do país ainda está ocupada pelo imperialismo; o socialismo está sendo construído, desde 1948, somente em uma parte do território.
Não podemos entender a origem da divisão da Coréia como resultado da existência de dois projetos políticos diferentes, cada um apoiado por uma parte do povo. A Coréia ficou dividida porque uma parte da mesma foi ocupada contra a sua vontade pelos Estados Unidos, abortando no sul o processo de libertação antiimperialista orientada ao socialismo que ocorria em todo o país.
A proposta do Norte
Desde 1945 a situação na Coréia se tornou bastante peculiar. Um país com quase 5000 anos de história comum, de repente se vê artificialmente dividido em duas zonas com sistemas políticos e econômicos antagônicos.
De uma perspectiva revolucionária, as tarefas na parte norte – onde o povo coreano alcançou a libertação – eram de uma revolução democrática que se orientava ao socialismo, enquanto que a luta na parte sul continuava sendo as de libertação nacional.
Ou seja, de uma perspectiva de classe, a revolução na Coréia do Norte – ao ter um caráter socialista – tinha como sujeitos fundamentais a classe operária, os camponeses pobres (a imensa maioria), os intelectuais e alguns setores populares da pequena-burguesia. Na Coréia do Sul, ao contrário, alguns setores da burguesia poderiam tomar parte na luta , já que não se buscava como tarefa prioritária a construção socialista, mas sim a libertação nacional.
Nesse sentido, a direção revolucionária encabeçada por Kim Il Sung tentou desde o início uma aliança antiimperialista em toda a Coréia, entre as forças revolucionárias do norte e as forças patrióticas do sul.
Em 1948, se convocou em Pyongyang a Conferência Conjunta dos Representantes de Partidos Políticos e as Organizações Sociais do Norte e Sul da Coréia. Nela, participaram todas as forças políticas que não estavam comprometidas com os Estados Unidos. Todos os partidos e organizações sociais da Coréia do Norte e a maioria das forças políticas da Coréia do Sul, incluindo figuras como Kim Gu, antigo líder do “Governo de Shangai” e férreo anticomunista. Ao retornar a Coréia do Sul, Kim Gu foi assassinado.
A Guerra da Coréia se origina a partir desse contexto: a luta entre dois projetos antagônicos; o de uma Coréia livre e unificada e o de tornar toda a Coréia submissa ao imperialismo norte-americano. A Guerra demonstrou a vontade do povo coreano de lutar até o fim por sua independência e pelo socialismo e somente o envio massivo de tropas norte-americanas poderia manter o regime neocolonial no sul, em clara decomposição e sem apoio popular.
Porém, a guerra também levou o imperialismo a posições mais radicais e a uma repressão brutal, que anulou as forças revolucionárias na Coréia do Sul.
Em 1972 houve uma primeira tentativa de negociação entre os “governos” do Norte e Sul. Kim Il Sung, como líder da delegação norte-coreana, propôs três princípios para a reunificação da Coréia. São os seguintes:
a) A Coréia deve reunificar-se de maneira independente, sem depender de forças estrangeiras nem tolerar suas intervenções. Traduzido ao contexto da Guerra Fria, nem Estada Unidos, nem a China, nem a União Soviética deveriam determinar algo na construção nacional da Coréia, que somente deveria ser fruto da decisão de seu povo. Tanto a China como a União Soviética, haviam ajudado em momentos cruciais a RPD da Coréia, porém seu governo revolucionário sempre foi muito zeloso no que diz respeito a sua própria independência e não permitiu que as tropas estrangeiras permanecessem na Coréia. Portanto, era a Coréia do Sul que deveria desfazer-se da presença estadunidense para levar a cabo o processo de reunificação.
b) Promover a grande unidade nacional acima das diferenças de ideologia, idéias e regime. Esse ponto deve ser entendido como uma forma de chegar a confiança mútua, contrapondo a posição sul-coreana (“agressão do norte para tornar vermelha toda a Coréia”) e buscar alianças antiimperialistas com forças não socialistas
c) Reunificação por via pacífica, sem utilizar a força das armas.
Essas conversas não chegaram a acordos, devido a natureza do regime sul-coreano, dependente dos Estados Unidos e dos grandes monopólios.
Com a contra-revolução no campo socialista, houve uma nova tentativa da Coréia do Norte de chegar a pontos de entendimento com as autoridades da Coréia do Sul, pretendendo chegar a acordos que permitissem o contato direto entre o povo do Norte e do Sul, o que contribuiria para dar uma firme base a reunificação.
Kim Il Sung formulou dez pontos:
1. Fundar um Estado Unificado independente, pacífico e neutro mediante a grande unidade pan-nacional. A estrutura desse estado seria confederativa com igual participação dos governos regionais do Norte e do Sul, e um Estado neutro, independente, pacífico e não alinhado, que não se incline à nenhuma potência.
2. Conquistar a unidade baseada no patriotismo e no espírito de independência nacional. Ou seja, independente de abordagens particularistas.
3. Co-existência, co-prosperidade e interesses comuns.
4. Fim de todas as batalha políticas que promova a divisão e o enfrentamento entre compatriotas.
5. Confiança mútua, fim do medo da agressão mútua e fim da perspectiva da “vitória sobre o comunismo” ou “comunistização”.
6. Democracia
7. Reconhecer as propriedades estatais, cooperativistas e privadas e proteger o capital e os bens individuais e coletivos, e as concessões comuns ao capital estrangeiro.
8. Compreensão e confiança mútua mediante contatos, viagens e diálogos entre os agentes sociais de ambos os lados.
9. Solidariedade e maior unidade entre a população do Norte, no Sul e exterior para conseguir a reunificação.
10. Reconhecimento especial a aqueles que contribuam a luta pela grande unidade nacional e a reunificação da Pátria.
Tudo esses pontos devem ser entendidos dentro de uma perspectiva dialética. Ou seja, em nenhum momento pode-se entender que o objetivo final dos revolucionários coreanos não seja o socialismo e a independência nacional. Porém, duas questões políticas fundamentais:
- Coréia do sul está – até hoje – submetida a uma das maiores ocupações imperialistas da era moderna e é necessário superar essa fase mediante a luta e a mobilização de todo o povo da Coréia do Sul. Os 10 pontos de Kim Il Sung são uma plataforma mínima para a unidade, mas levando em consideração o maior obstáculo, que leva a determinados setores da Coréia do Sul apoiar a ocupação dos Estados Unidos em detrimento de seus compatriotas do norte: o socialismo. A libertação nacional é uma tarefa que inclui mais forças que a construção do socialismo, ainda que, de forma natural, possa desembocar no socialismo.
- A Revolução na Coréia se fez em nome do socialismo, porém também em nome da independência. Para os coreanos, a independência nacional é quase tão importante como a construção do socialismo. Não devemos perder de vista esse aspecto na hora de analisarmos a revolução coreana.
A declaração conjunta e os acordos
A linha de abordagem do governo norte-coreano não pode materializar-se em acordos concretos até que existisse o primeiro governo social-democrata da história da Coréia do sul que não foi abortado por um golpe militar, encabeçado por Kim Dae Jung, antigo preso político.
No dia 15 de Junho do ano 200, se firmou a histórica declaração entre o Norte e Sul, que contém os seguintes acordos:
1. O norte e o sul concordam em resolver a questão da reunificação nacional de forma independente, baseando-se na união de esforços da nação coreana.
2. O norte e o sul reconhecem que existem pontos comuns entre a proposta da federação como ponto de partida (proposta pelo norte) e a proposta de confederação (impulsionada pelo sul), e concordam em trabalhar sobre estes pontos comuns no futuro.
3. O norte o sul concordam em começar a resolver assuntos humanitários antes do dia 15 de agosto de 2000, incluindo o intercambio de grupos familiares separados e a questão dos presos políticos.
4. O norte e o sul concordam em promover o desenvolvimento equilibrado da economia nacional, através da cooperação econômica e ativando o intercambio e ajuda mutua em todos âmbitos: sociais, culturais, desportivos, sanitários, meio-ambientais e outros.
5. O norte e o sul concordam em manter diálogos entre as autoridades de ambas as partes para tentar por em marcha os pontos acordados em um futuro próximo.
Tudo isso serviu para por em marcha numerosos encontros entre organizações populares do norte e sul, assim como abrir zonas de cooperação econômica, como na zona turística do monte Kumgang ou o complexo industrial Kaesong.
Lee Myong Bak e o caso Cheonan
A chegada ao poder de Lee Myong Bak significou um retrocesso histórico quanto ao processo histórico de reunificação iniciado em 15 de Junho de 2000.
Lee Myong Bak é um dos chefes máximos do monopólio Hyundai e foi prefeito de Seul. Seu mandato foi marcado por conflitos e foi investigado em duas ocasiões pela justiça, por numerosas irregularidades imobiliárias e de legalidade nos processos eleitorais.
Chegou ao poder devido ao desgaste econômico do governo social-democrata e incluiu em seu programa eleitoral propostas de grande impacto meio-ambiental e especulativo, como o Grande Canal Coreano (a proposta de unificar todos os rios navegáveis da Coréia do Sul por uma rede de canais). Esse tipo de proposta foi abandonado logo que chegou a presidência.
Porém, a política de Lee Myong Bak esteve em todo momento centrada na confrontação contra a RPD da Coréia. Recuperou grande parte da práxis política da época fascista da Coréia do Sul, como as acusações aos setores progressistas de estarem sendo organizados por “forças nas sombras” (ou seja, pela Coréia do Norte), a perseguição aos comunistas e seus aliados e a definição do Norte como o principal inimigo de Seul.
Reforçou a submissão da Coréia do Sul aos Estados Unidos. Lee Myung Bak foi o primeiro presidente, depois dos acordos de 15 de Junho, que não celebrou a perspectiva de reunificação em seu aniversário, optando por viajar aos EUA nessa data.
Quebrou acordos conquistados pelo governo social-democrata, como o que permitia a Coréia do Sul recuperar o controle sobre seu exército em tempos de paz, controle que agora recai sobre o Estado Maior Yankee.
Também derrubou a proibição de importar carne de vaca norte-americana, proibição que havia se realizado frente as suspeitas que ela poderia conter a doença da vaca loca. Tudo isso provocou manifestações massivas que foram duramente reprimidas.
O atual problema em torno do Cheonan deve ser entendido na dinâmica de confrontação do governo do Grande Partido Nacional. É uma fabricação dirigida para legitimar toda a política agressiva anterior e justificar a nova. De fato, os desencontros foram constantes desde que Lee Myong Bak assumiu o poder, muito antes do afundamento do Cheonan. Porém a atual crise serviu para terminar com todo tipo de comércio entre as duas Coréias (por exemplo, se rompeu unilateralmente as importações de areia da Coréia do Norte), os investimentos nas zonas conjuntas (ainda que já existam 120 empresas na zona mista de Kaesong), se congelaram os fundos norte-coreanos no Sul, Coréia do Sul está pressionando para que cessem todo tipo de acordo que inclua ajudas à Pyongyang, ao tempo que pede a China que proíba o turismo chinês uma das regiões mais belas da Coréia do Norte: o monte Kumgang, e, finalmente, vão tentar forçar novas sanções das Nações Unidas.
Assinado: Juan Nogueira, secretário-geral do Coletivo de Jovens Comunistas do Partido Comunista dos Povos da Espanha.