quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Entrevista com Elias Jabbour



O Blog de Solidariedade à Coréia Popular dará inicio a uma série de entrevistas com personalidades do mundo político e intelectual que já tiveram oportunidade de visitar a RPD da Coréia. Começaremos publicando uma brilhante entrevista concedida ao Blog de Solidariedade à Coréia Popular pelo geógrafo Elias Jabbour, autor do livro “China: infra-estruturas e crescimento econômico” da Editora Anita Garibaldi. Destacamos aqui que as opiniões do entrevistado não refletem, necessariamente, as opiniões dos editores do blog.

Boa leitura a todos.

Assinado: Equipe do Solidariedade à Coréia Popular
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Solidariedade à Coréia Popular: Países como China e Vietnã adotaram um modelo de construção socialista que ficou conhecido como “socialismo de mercado”. Na Coréia Popular, sabemos que na cidade de Kaesong existe uma Zona Econômica Especial, onde atuam empresas sul-coreanas, que empregam trabalhadores norte-coreanos. Foi uma maneira que o país encontrou para atrair investimento estrangeiro e desenvolver a região. Seria indício de que a Coréia Popular, futuramente, poderá adotar um “socialismo de mercado” semelhante ao da China e Vietnã?

Elias Jabbour: Sim,a instalação da zona de Kaesong é um indício de mudanças de rumo na economia norte-coreana. Mas as mudanças de rumo por lá dependem muito de uma mudança radical das relações da Coreia com os EUA e Japão. Acredito inclusive que os atuais incidentes ocorridos entre as duas Coreias são um forte indício de que a parte norte da península não se contenta mais com as conversas entre as seis partes e sim busca uma conversa bilateral diretamente com os EUA. Ouso afirmar que um dos objetivos estratégicos do regime está no reconhecimento de sua existência por parte dos EUA e do Japão, o que aliviaria sobremaneira as tensões na península e abriria condições objetivas a um aprofundamento de reformas. Mas a adoção de um modelo socialista de mercado não depende somente desses fatores. A Coreia do Norte demanda por uma mudança radical na forma como eles concebem o problema do desenvolvimento econômico e o papel do comércio internacional nesse processo. Além claro de uma mudança completa de atitude com relação a utilização de mecanismos puramente de mercado no que cerne a alocação de recursos. Enfim, (além de mudanças qualitativas no quadro internacional) acho que somente uma mudança radical das concepções de desenvolvimento por parte do governo norte-coreano. Impossível ter desenvolvimento onde a prática de comercialização de excedentes agrícolas por parte dos camponeses seja objeto de criminalização. A China do “Grande Salto Adiante” e da “Revolução Cultural” devem ser princípio de análise sobre o que não deve ser feito em matéria de política econômica.

S.C.P.: Kim Il Sung foi o principal líder da revolução coreana. Após sua morte, em 1994, o principal líder do país passou a ser seu filho, Kim Jong Il. Existe uma grande especulação por parte da imprensa ocidental que, após a morte de Kim Jong Il, quem assumirá seu posto será um de seus filhos. Acredita que tais informações seriam apenas boatos ou, pelas informações que colheu no país, seria realmente uma possibilidade? Caso não tenha ouvido falar em nada do tipo no país, comente sobre a questão do “culto à personalidade” dos líderes e a influência que isso exerce na vida do povo coreano.

E. J.: A resposta já foi dada: o filho de Kim Jon Il será o herdeiro do poder estatal. Sobre isso não cabem comentários e é uma forma coreana de solucionar seus impasses. Não temos o direito de julgar se é certo ou errado, pois o socialismo se manifesta em diferentes lugares de acordo com as particularidades de cada formação social. Sobre o culto à personalidade em si acho que se trata de um ataque a qualquer inteligência humana, não somos materialistas para continuarmos a acreditar na infabilidade deste ou daquele líder. Ninguém deve ser tratado com deus, até porque deus não existe. Olha que contradição!!! Nem Lênin que foi o maior revolucionário de todos os tempos esteve imune a erros. Mas a Coreia é rescaldo de sociedades agrárias confucianas, daí uma influência a ser levada em consideração quando se quer entender as sociedades asiáticas em geral. Num outro ângulo, seria leviano não trabalhar com o papel e o legado que o grande homem que foi Kim Il Sung deixou para seu país. Talvez aquela experiência não estaria viva sem esse legado.

S.C.P.: O Partido do Trabalho da Coréia se autodenomina um partido de tipo jucheano. O marxismo-leninismo foi abandonado pelos comunistas coreanos ou poderíamos dizer que não existiria Idéia Juche sem o marxismo-leninismo?

E. J.: É muito forte fala que eles abandonaram o marxismo-leninismo. Mas, o que é de fato marxismo-leninismo? É esse arremedo de teoria criado pela 3º Internacional e até hoje cultivado por gente sem nenhum apego com a verdade objetiva e concreta e que sobrevive politicamente às custas de um discurso “revolucionário” somente capaz de insuflar jovens fora do mercado de trabalho? Se isso que eu vejo de vez em quando por aí for “marxismo-leninismo” (muito materialismo e pouca dialética, muita forma e pouco conteúdo) eu mesmo estou fora. Podem me classificar como um “revisionista” se for o caso (aliás, certos “radicais” são especialistas em apontar o dedo na cara dos outros, numa clara reverência aos defeitos de Stálin e não às suas virtudes que foram muitas).
O marxismo-leninismo que cultivo é aquele que se propõe a ser um poderoso instrumento de penetração sobre a realidade, que se desenvolve pela mais ampla liberdade intelectual e de circulação de ideias e divergências. Um marxismo-leninismo em que todos tenham o direito de pensar o que quiserem, sem medo de serem julgados ou atropelados por quem acredita ser o “dono” deste mesmo marxismo-leninismo ou mesmo por quem tenha algum micropoder que se esvai no decorrer do tempo. Um marco teórico pautado pela busca incessante da verdade, mesmo que essa verdade nos faça chorar e sentir indignação sobre os próprios princípios que acreditamos serem “infalíveis”.  Reflitam sobre isso. Não existiria revolução coreana (consequentemente nem Ideia Juche) sem o leninismo, sem a vitória da União Soviética na 2ª Guerra Mundial e sem a derrota japonesa. Será que existiria Lênin sem o malogro russo na 1ª Guerra Mundial?

S.C.P.: Um dos princípios básicos da Idéia Juche é o da autonomia. Durante a luta revolucionária anti-japonesa, ao formular os postulados básicos de sua nova concepção, Kim Il Sung dizia que os comunistas coreanos precisavam de autonomia em relação às grandes potências. Além disso, também dizia que somente o povo de cada país teria condições de definir qual seria o seu destino, o que pressupunha uma autonomia ideológica do movimento comunista coreano. Seria correto dizer que, da mesma maneira que Lênin rompeu com o esquematismo da II Internacional, Kim Il Sung teria rompido com o esquematismo que depois caracterizou a própria prática da Terceira Internacional e dos Partidos Comunistas a ela ligada?

E. J.: Pode ser que sim e podem ser que não. A lógica da 3º Internacional da revolução anti-imperialista e antifeudal teve sucesso no caso coreano. O que pode ter havido foi um certo rompimento com as formas de divisão internacional de trabalho dentro do mundo socialista. A Coreia do Norte tem siderurgia e indústria química, Cuba não.

S.C.P.: Mesmo com as diferenças culturais e ideológicas existentes entre os comunistas brasileiros e coreanos, existe algo do que podemos aprender da experiência socialista coreana?

E. J.: Temos muito o que aprender com a construção nacional de cada formação que deu arcabouço ao Leste Asiático. São construções milenares, inclusive a Coreia. Daí a noção de nação ser muito forte e essencial para a construção daquelas experiências. Impossível fazer um diagnóstico da experiência coreana sem entender os Impérios chinês e mongol, sem compreender a penetração do confucionismo e do taoísmo naquela região. O problema de caracterizar a experiência coreana é muito mais complexo do que analistas de direita e de “esquerda” acham.

S.C.P.: O marxismo-leninismo é o auge do desenvolvimento intelectual da classe trabalhadora. Você acha que de acordo com um desenvolvimento cultural diferenciado, com tradições fortemente enraizadas e com um desenvolvimento histórico muito peculiar, uma outra teoria do socialismo científico poderia ser mais eficaz que o próprio marxismo-leninismo?

E. J.: Acho que não. Mas o marxismo-leninismo só tem serventia e capacidade de influir nos rumos de um determinado lugar se ele for enriquecido com todo acúmulo nacional de cada formação. O contrário é um discurso estéril, ruim, pobre, dogmático, um stalinismo de quinta categoria.

S.C.P.: Cuba é conhecida internacionalmente por seus elevados índices sociais, como são os mesmos na Coréia Popular?
  
E. J.: Eu não conheço os índices sociais coreanos e não existem – até onde eu saiba – estatísticas à disposição do público. Sei que eles são apontados como modelo em matéria de todo o chamado pré-natal e que com certeza deve haver um grande esforço nacional para manter patamares decentes em matéria de saúde e educação. Trata-se de uma herança positiva do antigo bloco socialista. Por outro lado, temos de medir o impacto que sérias crises de abastecimento alimentar tem derivado ao conjunto dos índices sociais.

S.C.P.: Qual é a relação da Coréia Popular com os países socialistas e com os comunistas do resto do mundo em geral, mas precisamente da Coréia do Sul e do governo Venezuelano?

E. J.: A princípio, pelo que noto, são muito boas apesar da “forma coreana” de relação com outros partidos e outros países. Sobre a Venezuela e sua relação com a Coreia eu não tenho informações. Seria uma boa pauta a ser feita com algum representante diplomático venezuelano ou coreano.

S.C.P.: Durante o governo Lula, tivemos avanços no que concerne às relações com a RPDC?

E. J.: Pensem bem: o maior país da América Latina (tido pelo imperialismo como “seu quintal”) abrindo uma embaixada na Coreia do Norte em meio a toda crise nuclear. Isso já diz muito. Parabéns ao Brasil.

S.C.P.: Existe uma forte participação das mulheres no processo político norte-coreano?

E. J.: Trata-se de um grande exemplo a ser diagnosticado na análise da Revolução Coreana. As mulheres tiveram um grande papel tanto no movimento revolucionário nacional quanto na administração do país. As mulheres somente se emanciparam na Ásia onde existe socialismo. No Japão e na Coreia do Sul existem recintos e reuniões em que mulheres, objetiva e subjetivamente, são proibidas de entrar. Muito diferente das experiências socialistas daquela região.