quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Realismo socialista na Coreia do Norte


Estúdio de Arte Mansudae, em Pyongyang, tem mil artistas e é provavelmente um dos estúdios com maior produção no mundo. Sua arte, de um realismo socialista contemporâneo, tem entre os clientes Alemanha e países africanos

Por Nadja Sayej, na Vice

A arte da República Democrática Popular da Coreia é a marca registrada do realismo socialista contemporâneo. Na verdade, é possível comprar a arte da Coreia do Norte pela internet — desde cartazes de propaganda, paisagens e buquês de flores até retratos de família. Claro, os cartazes de propaganda são os mais vendidos (também são os mais baratos), mas as pinturas com joias são outra coisa completamente diferente (obras raras e chamativas, totalmente confeccionadas com pedrarias).

Algumas semanas atrás, numa feira de arte em Dandong, China, a atração mais popular foi uma exposição de belas artes da RDPC, aberta na Galeria Dandong no dia 10 de outubro. A CCTV (um dos principais canais de TV chineses) anunciou que a exposição se tornou o destaque da feira, vendendo 30 obras nos primeiros três dias. Não havia arte de propaganda na exposição. A seleção era mais expressiva, arte estilo cartão-postal. Parece que enquanto muitas barreiras norte-coreanas ainda estão de pé, a arte é uma maneira de ultrapassá-las.



Tudo isso foi criado por um estúdio em particular. Fundado em 1959, o Estúdio de Arte Mansudae é um estúdio de Pyongyang que emprega quatro mil funcionários, mil deles artistas. Provavelmente um dos estúdios de maior produção no mundo, a instituição costumava funcionar sob a coordenação de King Jong Il, o que fazia dele o mais proeminente estúdio de arte da Coreia do Norte. Contando com departamentos de produção em pintura a óleo, cerâmica, xilografia e escultura — o Mansudae criou o Monumento à Fundação do Partido Coreano dos Trabalhadores, onde três mãos empunham uma foice, um martelo e um pincel de caligrafia. Os caras levam a sério sua arte.

A produção de obras com clientes internacionais é a receita perfeita para o sucesso de vendas. Desde os anos 1970, o Mansudae tem uma seção internacional, oferecendo mão de obra barata para grandes monumentos, como o Monumento da Renascença Africana no Senegal e o monumento de guerra Acre dos Heróis na Namíbia. Os monumentos do Mansudae são criticados por serem muito “coreanescos”; aparentemente a Alemanha é o único cliente ocidental do estúdio, que os contratou para recriar a Fonte do Conto de Fadas em Frankfurt. Na última década, estima-se que o Mansudae tenha feito US$160 milhões. Ainda assim, os artistas não veem esse retorno — todo lucro das vendas vai direto para o estado.

Numa rara entrevista, o gerente do site ocidental do Mansudae, Pier Luigi Cecioni, falou com a VICE, direto da Itália, sobre o site do Estúdio de Arte Mansudae, a arte do realismo socialista, e como é ser um dos cinco estrangeiros numa festa em Pyongyang.

VICE: Como você acabou se envolvendo com a arte norte-coreana? Você parece ser um especialista.
Pier Luigi Cecioni: Em 2005, eu era presidente de uma orquestra de música clássica em Florença, Itália. Por coincidência, uma delegação da minha orquestra era convidada para participar do Festival da Amizade de Primavera em Pyongyang todo ano (agora menos frequentemente). O Festival acontece por volta do dia 15 de abril, que é o aniversário do pai da pátria, Kim Il Sung, e é o feriado mais importante da Coreia do Norte. Cerca de 700 pessoas participam do festival e somente 20 são estrangeiros (nosso grupo era formado por cinco pessoas). Em Pyongyang, perguntei se eles tinham algum centro de belas-artes ou galeria que eu pudesse visitar.

Acontece que o Estúdio de Arte Mansudae fica em Pyongyang, e esse é provavelmente o maior centro de produção de arte do mundo. E eu nunca tinha ouvido falar nisso (ninguém tinha, provavelmente). É possível encontrar algumas informações sobre o Mansudae em nosso site. Quando perguntei se eles estariam interessados em fazer algo no Ocidente, eles responderam: “É claro”. Em janeiro de 2006, depois de meses de correspondência, retornei a uma Pyongyang extremamente gelada com meu irmão Eugenio, um artista, professor da Academia de Belas Artes de Florença e, na época, diretor de um centro de exposições próximo de Florença. Escolhemos vários trabalhos para trazer para a Europa e assinamos um acordo, tornando-nos representantes do Estúdio de Arte Mansudae no Ocidente. Uma das cláusulas do acordo era organizar exposições das obras do Mansudae no Ocidente. Retornei a Pyongyang algumas vezes desde então e artistas coreanos já vieram visitar a Itália.

Até que ponto a construção do site do Estúdio de Arte Mansudae evoluiu?
Começamos a construir o site em 2007, na época de nossa primeira exposição. O site tem como público-alvo os ocidentais e é gerenciado por mim.

O Estúdio de Arte Mansudae representa a elite dos artistas da Coreia do Norte. Quão difícil é se juntar ao estúdio e qual é o processo de entrada para os artistas?
A maioria dos melhores artistas do país está no Mansudae. Praticamente todos eles têm um curso universitário ou formação em belas-artes. Quando um estudante se destaca na universidade, ele ou ela é convidado a se juntar ao Mansudae. E se um artista se destaca em outro centro, ele ou ela pode ser convidado a entrar para o estúdio. É uma grande honra fazer parte do Mansudae.

Você sabe quantos artistas entram no estúdio por ano?
Desde que comecei meu contato com o Mansudae, pelo que sei, o número de artistas se manteve mais ou menos constante, então, não acho que haja um número fixo de artistas entrando todos os anos.

O treinamento é muito exigente, começando aos nove anos de idade, certo?
Pelo que eu sei, não há um treinamento que comece tão cedo. Do ensino elementar até o colegial, até onde eu sei, as crianças frequentam a escola somente no período da manhã e estudam várias matérias. Do final da escola elementar até o colegial, durante a tarde, os estudantes podem participar voluntariamente de programas e instituições nos quais podem praticar música, arte, esporte, teatro, etc. Minha impressão é que o treinamento começa a ser muito exigente na universidade: os norte-coreanos são estudantes universitários muito aplicados e sérios. No entanto, não tenho um conhecimento aprofundado sobre o sistema escolar da Coreia do Norte.

É verdade que mesmo quando a arte dos artistas vende, o lucro vai direto para o estado?
O Mansudae tem uma, talvez inesperada, autonomia econômica. O dinheiro das vendas vai para o Estúdio de Arte Mansudae. Isso deve ser diferente no caso de grandes projetos no exterior, com os quais não estou envolvido. Esses provavelmente são gerenciados num nível governamental.

Vocês têm muitos clientes no exterior? O que vende mais e aonde? São as pinturas com joias ou, digamos, os cartazes de propaganda?
Sim, temos muitos colecionadores por aí. Como estamos na Itália, muitos dos nossos colecionadores são italianos. Os cartazes de propaganda, por serem os menos caros, e também muito incríveis, são as vendas mais fáceis. No entanto, vendemos bem todos os tipos de obra. As pinturas com joias são relativamente mais raras.

Recentemente, vi a pintura Festa Dançante a Céu Aberto, de Han Guang Hun. As pinturas são baseadas em eventos reais? Pela pintura parece ser uma festa muito divertida. Eu não sabia que os norte-coreanos faziam festas assim.
Engraçado você escolher essa pintura. Eu lhe enviei uma foto não muito boa que fiz em 15 de abril de 2005, na dança na Praça Pyongyang em celebração ao aniversário de Kim Il Sung. Eu também participei da dança. Quando fiz essa foto, eu ainda não tinha visto a pintura [Festa Dançante a Céu Aberto]. Fora essas grandes festividades, os coreanos gostam muito de cantar. Acho que deve ser algo genético, porque quase todos cantam muito bem. Em julho passado, quando estive lá, eu sempre via grupos de pessoas cantando ao entardecer e, aos domingos, muitas pessoas fazem piqueniques familiares nos parques, cantando e dançando. O karaokê, como em muitos países asiáticos, é algo muito popular.

Você disse que conheceu esses artistas quando eles vieram para a Itália e que eles não gostaram da arte contemporânea. Do que eles gostaram? As personalidades deles estão mais para egocêntricas, como o Damien Hirst, ou eles são mais como artesões humildes? Eles são engraçados? Sérios? Dramáticos? Teatrais? Eles são seus amigos?
Os artistas definitivamente não têm grandes egos, nem são humildes. De certa maneira, dentre as pessoas que frequento, eles se consideram todos iguais, mesmo tendo consciência que, na arte, alguns são melhores do que outros e que todos têm posições de trabalho diferentes. A arte contemporânea ocidental não interessou a eles. Na verdade, eles a acharam literalmente engraçada; eles riram vendo alguns dos trabalhos, não com desdém, mas com uma surpresa verdadeira. Eles ficaram muito mais interessados em arte clássica. Cerca de um ano atrás, acompanhei alguns deles a Galeria Uffizi e aos museus do Vaticano, e eles gostaram muito. Eles conheciam os principais artistas pelo que estudaram na universidade. Eles são absolutamente figurativos e nunca viram experimentos com arte abstrata, conceitual ou similares.

O artista Lee Cheol, da Mansudae, participou recentemente de uma exposição e foi entrevistado pela CCTV na China. Os artistas falam publicamente com frequência? Eles gostam de ser o centro das atenções?

Não posso oferecer uma resposta geral. Quando fizemos nossa primeira exposição, convidamos dois artistas da Mansudae e eles falaram com a mídia sem problemas. Não sei se eles falam frequentemente em público na Coreia do Norte. Uma vez, assisti a um vídeo longo de um programa de TV (sem entender nada, claro) com entrevistas dos dois artistas que tinham vindo para a Itália. A verdade é que eles são muito formais para os nossos padrões. Mas eles raramente vão ao exterior e quase ninguém fala alguma língua europeia.

Eles falam inglês? Sei que alguns deles ficam anos fora, criando murais em lugares como a Namíbia.
Praticamente ninguém fala inglês. Há alguns interpretes. O Mansudae tem realizado projetos realmente grandes no exterior, principalmente trabalhos arquitetônicos e esculturais. O mais recente é um museu em Angkor Vat, Camboja, que foi inaugurado há pouco. Para esses trabalhos eles ficam anos fora, mais ou menos como diplomatas. Conheci muitos artistas que passaram alguns anos em vários países, principalmente na África.

E como é visitar o estúdio Mansudae? Eles estão abertos a visitas do público? Você tem fotos? Isso é como uma escola de arte orientada para a comunidade?
Para mim, o Mansudae é um lugar familiar. Quando estou lá, passo muitas horas conversando sobre vários assuntos com diferentes pessoas. Tenho várias fotos, mas não sou um fotógrafo muito bom. Nunca encontrei nenhuma restrição para fotografar lá. No Mansudae, que tem cerca de 12 hectares, há uma galeria comercial, que pode ser visitada por alguns poucos turistas. As outras partes em geral não são abertas ao público, são espaços de trabalho. O lugar é mais ou menos similar a um campus universitário norte-americano (eles têm até um campo de futebol), mas definitivamente não é uma escola. São cerca de quatro mil funcionários, mil deles são artistas, e, como eu disse antes, praticamente todos já formados, então são mais velhos do que estudantes. Há todo tipo de estúdio lá, inclusive os dos escultores de estátuas monumentais. Há laboratórios, lojas, departamento de suprimentos, etc. Há uma grande galeria, um jardim de infância, uma espécie de cafeteria e muitos outros prédios. Eu não conheço tudo. As pessoas não moram no Mansudae: elas trabalham lá e moram em Pyongyang.

O propósito da arte na Coreia do Norte é a mensagem política. O que mais o realismo socialista incorpora? Que símbolos eles são ensinados a pintar, tanto nas pinturas do Kim Jong-un como nas outras?
Eu não diria que o propósito de toda a arte norte-coreana seja a mensagem política. O realismo socialista representa a Coreia do Norte sob uma luz positiva e, num sentido mais amplo, quer inspirar os espectadores a ter sentimentos positivos, patrióticos e a celebrar; especialmente as grandes esculturas e pinturas exibidas em espaços públicos: os líderes. Os temas estão frequentemente relacionados ao trabalho, um assunto que não é comum no ocidente. Uma forma particular do realismo socialista são os cartazes. Eles são pintados à mão, não impressos, e têm mensagens políticas e sociais. Muitos têm como alvo os Estados Unidos, visto como um agressor do passado e um agressor em potencial. Além do realismo socialista, pinturas de paisagens são muito populares. Assim como pinturas de flores e da natureza em geral. Há também muitos retratos, principalmente de trabalhadores. Mas há tantos tipos de arte – escultura, cerâmica, bordado, vários tipos de pintura, xilografia, caligrafia e algumas outras — que não é possível generalizar.