Na data de 18 de maio de 1980, o heroico povo sul-coreano pegou em armas para se opor ao morticínio do regime militar-fascista de Chun Doo Hwan, patrocinado pelo imperialismo ianque. Sob pretexto de “combater o comunismo” e as chamadas “rebeliões pró-Coreia do Norte”, o regime de Chun Doo Hwan enviava suas tropas, tanques e até mesmo aviões militares para ocupar os campi das principais universidades da Coreia do Sul, reprimindo o combativo movimento estudantil sul-coreano que se mobilizava em defesa da plena democratização da Coreia do Sul, pela revogação das leis fascistas, e parte expressiva deste movimento estudantil compartilhava de uma visão consequentemente anti-imperialista, reivindicando a retirada das tropas ocupantes norte-americanas do país e a reunificação nacional com o Norte socialista.
Na cidade de Gwangju (província de Cholla do Sul), as hordas do regime de Chun Doo Hwan, insanas e descarregando o ódio mais animalesco por meio de prisões, espancamentos de estudantes até a morte, fuzilamentos indiscriminados contra a população comum, invasão de casas e propriedades, estupros, abortos forçados contra mulheres grávidas, dentre demais barbaridades, os fascistas logo tiveram a resposta do povo: enquanto, inicialmente, o perfil dos manifestantes contra os arbitrariedades das tropas de Chun Doo Hwan era composto basicamente por estudantes, pouco a pouco a população comum passa a compor a esmagadora maioria nos protestos, que assumem um caráter cada vez mais radical. As massas de Gwangju não aceitam passivamente as humilhações e assassinatos diários de seus pais, mães, filhos e amigos queridos. A partir de manifestantes que já haviam servido no exército reacionário sul-coreano, não foi difícil para que o povo invadisse em massa depósitos de armas do governo – dado que as tropas se encontravam mobilizadas em sua esmagadora maioria para a repressão nas ruas –, rendendo e executando oficiais, expropriando armas para a formação do que viria a ser o Exército Civil.
A luta armada em Gwangju duraria cerca de dez dias. Neste meio tempo, as massas armadas lograriam expulsar as tropas de Chun Doo Hwan e manter o controle da cidade, construindo um quartel-general no que era anteriormente a Prefeitura Municipal de Gwangju. Estando as massas de Gwangju, porém, isoladas, sem uma perspectiva política unificada entre os diferentes setores do movimento popular, sem o apoio e a organização das massas no restante do país e sem a experiência militar devida, o cerco do regime de Chun Doo Hwan sobre a cidade, bloqueando-a e esgotando-a por meio do corte de fornecimentos de alimentos, combustíveis e demais suprimentos, termina por impor uma derrota à heroica resistência de Gwangju, num massacre cujos números são altamente controversos, com muitos avaliando em pelo menos dois a cinco mil mortos pelo regime.
Parece curioso usarmos termos como “fascismo”, “mortes”, “espancamentos”, “luta pela democracia” ou demais para caracterizarmos o regime sul-coreano, numa época em que todas estas palavras são atribuídas à Coreia do norte socialista. É possível que a esmagadora maioria da esquerda brasileira, em quase sua totalidade, jamais tenha ouvido falar do que foi o Levante de Gwangju, uma verdadeira Comuna de Paris do povo sul-coreano, que se levantou em armas contra seus exploradores e opressores. Fazemos parte de uma geração à qual foi negada o direito de conhecer a história de luta dos povos do mundo, as guerras de resistência e a verdade sobre quem se coloca realmente ao lado do fascismo, e quem se põe pela democracia e o progresso social. Isso é particularmente verdadeiro no caso de Gwangju, o massacre esquecido do fascismo sul-coreano.
Ademais, a luta do povo sul-coreano nem de longe se limita ao Levante de Gwangju. Ao contrário, desde sua fundação no ano de 1948 pela criminosa ocupação dos Estados Unidos, o sul da Península foi e é palco de intensas lutas populares contra a repressão política criminosa, que acompanha toda a sua história.
Portanto, na data em que se marca os 40 anos do início da resistência de Gwangju, pensamos ser pertinente, como forma de homenagear as massas sul-coreanas em luta, traçar um breve histórico de sua resistência contra o imperialismo norte-americano e a reação local. Esperamos contribuir para que os brasileiros desenvolvam ainda mais seus sentimentos internacionalistas para com as lutas de libertação nacional.
A ocupação dos Estados Unidos na Coreia do sul e o estabelecimento de um regime fantoche
Antes de entrarmos propriamente no Levante de Gwangju, traçaremos uma apresentação do desenvolvimento do regime neocolonial vigente na Coreia do Sul, que viveu durante anos sob a tutela de um regime militar fascista apoiado pelos Estados Unidos.
Desde a libertação da Coreia do jugo do imperialismo japonês, no ano de 1945, a parte sul da península vive sob a ocupação militar dos Estados Unidos, que, no contexto da Guerra Fria, promoveu o anticomunismo e o fascismo, como forma de conter a ascensão das lutas operárias e populares do povo sul-coreano, e que inspirado no exemplo do que ocorria na Coreia do norte, exigia a construção de um Estado democrático, progressista e soberano.
Após uma longa guerra de libertação contra o Japão, o norte da península coreana foi libertado do imperialismo japonês pelas ações conjuntas do Exército Popular Revolucionário da Coreia, dirigido por Kim Il Sung, e do Exército Vermelho soviético. Os Estados Unidos esperavam que, com a rendição do Japão, poderiam assim passar a ocupar todo o território coreano. Vendo o avanço fulminante das forças guerrilheiras, junto com o Exército Vermelho, os imperialistas norte-americanos propuseram o estabelecimento do Paralelo 38, que cortou a península coreana ao meio e viria a sacramentar, em breve, a histórica divisão entre “Coreia do Norte” e “Coreia do Sul”.
Os Estados Unidos estacionariam suas tropas no sul da península apenas algumas semanas após a libertação do país, sem terem fornecido qualquer contribuição efetiva para a expulsão das forças japonesas da Coreia. Uma das primeiras medidas tomadas pelos militares ianques foi a dissolução forçada dos comitês populares, colocando à frente do poder político figuras ligadas à antiga administração colonial e até mesmo ao imperialismo japonês. Na parte norte da península, a revolução democrática, anti-imperialista e antifeudal avançava com ímpeto, servindo como sólida base para o estabelecimento de um Estado unificado, democrático e próspero.
É importante destacarmos que os Estados Unidos, desde que chegaram no sul da península coreana, jamais cumpriram qualquer papel minimamente progressista. Antes mesmo da chegada dos ocupantes norte-americanos, as massas sul-coreanas haviam estabelecido a República Popular da Coreia: tentativa de construção de um novo Estado, que se apoiava nos comitês populares locais. A política de repressão e supressão praticada pelos Estados Unidos no sul da Coreia foi completamente diferente daquela aplicada pelos soviéticos no Norte, onde os comitês populares foram reconhecidos, e as atividade dos partidos democráticos eram realizadas normalmente.
Ao chegar no país, os Estados Unidos logo trataram de acabar com tal experiência, dissolvendo a República Popular da Coreia, prendendo e perseguindo seus principais líderes.
Desde o começo, os Estados Unidos trataram de impor ao país uma administração de tipo militar e neocolonial, passando a controlar a Coreia do Sul política, cultural e economicamente. No ano de 1946, para tentarem legitimar sua administração militar, trouxeram dos Estados Unidos aquele que seria o primeiro ditador da futura república fantoche: Syngman Rhee (ou Ri Sin Man). Syngman Rhe era uma figura historicamente pró-norte-americana, que havia se exilado nos Estados Unidos no ano de 1904, sendo nomeado posteriormente como presidente de uma autoproclamada “Assembleia Democrática da Coreia do Sul”, em 1947, seria renomeada como “Assembleia Legislativa Interina”.
Durante certo período, os Estados Unidos a União Soviética realizaram diversas conversas para estabelecerem uma solução para o problema da divisão da Coreia. De acordo com a jornalista Anna Louise Strong:
“Por dois anos, essas conversas só contribuíram para aumentar a amargura. Os americanos insistiram em incluir no governo provisório os colaboradores pró-japoneses e os exilados que regressaram. Os russos recusaram. Os russos insistiram em incluir representantes dos sindicatos, das organizaçõs camponesas e outras semelhantes. Os EUA não quiseram ouvir falar sobre isso.
Por fim, os soviéticos acabaram por propor que ambos os países se retirassem da Coreia – o que foi cumprido pela parte soviética em dezembro de 1948 – proposta obviamente rechaçada pelos imperialistas norte-americanos.” [1]
Em 1948, os Estados Unidos promoveram um processo eleitoral farsante, que iria culminar posteriormente na fundação da “República da Coreia”, um Estado fantoche controlado pelos Estados Unidos. Os Estados Unidos, ainda em 1947, aproveitaram-se de sua hegemonia nas Nações Unidas para aprovar uma resolução que desse guarida a realização de eleições. Dessa resolução, surgiu a chamada Comissão Temporária das Nações Unidas para a Coreia, que se encarregaria de organizar a farsa eleitoral. A parte norte da península coreana, obviamente, não tomou parte no processo.
A realização de eleições separadas foi alvo de intenso repúdio por amplos setores das massas coreanas, que viam na medida uma tentativa de perpetuar a divisão da península. Mesmo antes da realização do processo eleitoral farsante, já havia o entendimento de que os Estados Unidos e os reacionários sul-coreanos visavam realizar eleições de tal tipo. Em todo o território da Coreia do Sul, eclodiram revoltas contra o imperialismo norte-americano.
Em 1 de maio de 1947, vastos setores da população da Ilha de Jeju saíram às ruas para denunciar as manobras para a realização de eleições separadas. As forças da repressão dispararam contra a população desarmada, resultando na morte de cerca de seis pessoas. Por se tratar de uma ilha situada ao sul – portanto um território separado da parte continental da Coreia – Jeju possuía uma dinâmica política própria. De acordo com o historiador Bruce Cumings:
“A liderança política efetiva de Jeju, até o começo de 1948, era exercida por poderosos comitês populares de esquerda, que emergiram pela primeira vez em agosto de 1945, e continuaram operantes sob a ocupação americana (1945-1948). A ocupação americana preferiu ignorar Jeju, ao invés de dar razão aos comitês; aquela apontou uma liderança continental formal, mas deixou o povo da ilha administrar seus próprios assuntos.” [2]
As manobras dos reacionários sul-coreanos e dos imperialistas norte-americanos para fundar um país em separado, mediante realização de eleições farsantes, desencadeou um profundo ódio na população de Jeju, que conduziu luta armada contra o imperialismo norte-americano e suas marionetes. Grandemente dirigidas pelo Partido do Trabalho da Coreia do Sul, as massas da ilha lançaram enfrentamentos armados, incendiaram centros de votação e delegacias de polícia. A classe operária realizou importantes greves, que chamavam atenção por sua radicalidade.
Para reprimir as manifestações da população de Jeju, os imperialistas norte-americanos recrutaram para o trabalho sujo os “serviços” da chamada “Liga da Juventude do Norte”, organização paramilitar de tipo fascista, formada em sua grande medida por elementos reacionários que escaparam do norte da Coreia. A Liga da Juventude do Norte era conhecida por sua crueldade contra a população. Assim disse o historiador George Katsiafikas: “estes assassinos não pagos viviam dos saques da guerra, estuprando e assassinando de aldeia em aldeia, sujeitando os indefesos nativos da ilha – particularmente as mulheres – a torturas e humilhações.” [3]
O Levante Popular de Jeju foi uma das primeiras grandes revoltadas do povo sul-coreano contra a opressão do imperialismo norte-americano e dos reacionários sul-coreanos. O Levante Popular de Jeju foi afogado num mar de sangue, deixando entre 30 mil e 60 mil mortos, com cerca de 40 mil pessoas buscando exílio no Japão. Nessa mesa época, ocorrem outros levantes importantes que também podem ser lembrados, tais como o Levante de Yo Su. Na cidade portuária de Yo Su, um contingente de tropas que aguardavam para reprimir o povo de Jeju se recusaram a servir de bucha de canhão no massacre de seus compatriotas, e se rebelam contra o governo, passando para a luta armada. Como podemos ver, o povo sul-coreano, desde o princípio, resistiu bravamente contra as maquinações do imperialismo norte-americano. Somente após diversas campanhas repressivas e um verdadeiro massacre contra a população, a República da Coreia – Estado fantoche até os tempos atuais na parte sul da península – pôde ser fundada. Durante a Guerra da Coreia, inúmeros massacres seriam também cometidos pelo regime fantoche em conluio com o imperialismo norte-americano, de modo que poderíamos escrever dezenas de artigos sobre cada um deles.
O Levante de Abril de 1960
A primeira etapa da República da Coreia foi comandada por Syngman Rhee. Após as eleições fraudulentas realizadas em 10 de maio de 1948, Syngman Rhee governaria a Coreia do Sul deste ano a 1960. Durante a época em que esteve no poder, Syngman Rhee encabeçou o país com mão de ferro, perseguindo milhares de patriotas que lutavam contra a dominação do imperialismo norte-americano. Um dos casos mais emblemáticos de repressão política contra lideranças pró-reunificação foi a prisão (1956) e execução (1959) de Cho Pong Am, que havia sido candidato à presidência da Coreia do Sul pelo Partido Progressista e recebido dois milhões de votos no pleito eleitoral realizado em 1956. Cho Pong Am, como a maioria dos opositores políticos ao regime marionete, seria acusado de “espião da Coreia do Norte”.
Do ponto de vista econômico, o país foi igualmente colocado sob completo domínio e dependência do “auxílio” financeiro norte-americana que, em 1953, representava 14% do Produto Nacional Bruto do país, e que em 1957 chegaria a aproximadamente 23%. Uma parte significativa desse montante parava nos bolsos de uma nova classe de capitalistas burocráticos que se formava, bem como dos próprios correligionários de Syngman Rhee e seu bando. A corrupção atingia níveis gigantescos e contribuía para aumentar a insatisfação popular contra o regime, que nunca gozou de real legitimidade entre as massas populares. Em 11 de março de 1960, a população da cidade de Masan vai às ruas protestar contra as eleições fraudulentas realizadas por Syngman Rhee. Em 15 de março de 1960, tais protestos se alastram para outras cidades da Coreia do Sul e são violentamente reprimidos. A repressão contra o movimento só fez com que a rebelião das massas aumentasse em adesão. Em Seul, manifestantes cercaram e incendiaram edifícios do governo, do Partido Liberal (que se encontrava no governo) e da “Associação da Juventude Anticomunista da República da Coreia”. Apesar das manifestações se dirigirem inicialmente contra o governo Syngman Rhee, havia um forte sentimento anti-imperialista por trás das motivações dos estudantes. O Departamento de Estado dos Estados Unidos, hipocritamente, dando-se conta de ter a imagem do país ligada ao governo de Syngman Rhee, publicou uma nota exigindo que o governo sul-coreano tomasse “necessárias e efetivas ações para proteger o direito democrático de expressão, reunião e liberdade de imprensa”, além de ter “criticado” as medidas repressivas do governo.
Usando uma tática que seria repetida em outros episódios – tais como no próprio Levante Popular de Gwangju de 1980 –, os Estados Unidos procuravam passar para o povo sul-coreano e a opinião pública internacional uma imagem de “distanciamento” em relação ao governo Syngman Rhee, como se o regime reacionário vigente na Coreia do Sul não fosse em si uma criação ianque. Conforme observou um editorial do Diário do Povo, publicado em 25 de abril de 1960, “sem as baionetas norte-americanas, o regime de Syngman Rhee não teria durado um dia sequer”. Syngman Rhee acabou renunciando, terminando sua lamentável trajetória de lacaio dos Estados Unidos num exílio no Havaí.
O regime de Pak Chung Hee
Depois da queda de Syngman Rhee, a Coreia do Sul viveu um curtíssimo período de “democracia” burguesa. A administração do Estado marionete passou às mãos de setores mais liberais das classes dominantes sul-coreanas, o Estado foi reorganizado em bases parlamentaristas e Chang Myon foi eleito Primeiro-Ministro do país. Em 16 de Maio de 1961, Chang Myon é vítima de um golpe de Estado liderado pelo militar reacionário Pak Chung Hee. O golpe de Estado inaugura uma nova fase na vida política da Coreia do Sul, que seria igualmente marcada pela brutal exploração dos trabalhadores e repressão dos movimentos de massas, em especial aqueles de caráter revolucionário. Pak Chung Hee instaura uma ditadura militar de tipo fascista.
Pak Chung Hee foi um antigo colaborador japonês. Durante sua juventude, alistou-se no Exército Imperial Japonês e estudou na Academia Militar de Tóquio. Seu nome japonês era Okamoto Minoru. Ainda no começo de seu governo, instalou uma chamada “corte revolucionária” que ficou encarregada de prender e executar alguns nomes do período anterior. O golpe de Estado perpetrado por Pak Chung Hee buscou se apresentar para as massas como a real culminação do espírito das revoltas de abril de 1960 que derrubaram Syngman Rhee. No começo, adotou uma postura hostil aos chamados chaebols, conglomerados estatais sul-coreanos que haviam começado a prosperar ainda época de Syngman Rhee, graças à sua política de “substituição de importações”. Os chaebols eram vistos pela opinião pública sul-coreana como fontes de corrupção. Pak Chung Hee, junto a seu colaborador político Kim Jong Pil, criaria a KCIA, uma agência de espionagem anticomunista, que ficaria conhecida por sequestros internacionais de professores e estudantes sul-coreanos que viviam no estrangeiro. Promove uma política de hostilidade aberta contra os países socialistas. Os imperialistas norte-americanos avaliavam que, sob Pak Chung Hee, a Coreia estaria avançando corretamente.
Com a Guerra do Vietnã, a capacidade dos Estados Unidos em financiar a economia sul-coreana for enfraquecida (na época, 80% dos investimentos de capital fixo provinham dos Estados Unidos). Assim, Par Chung Hee propôs, com apoio ianque, a normalização de relações e uma maior aproximação com o imperialismo japonês. Em março de 1964, frente às negociações entre Japão e Coreia do Sul, as massas populares sul-coreanas novamente se levantam, gritando abertamente “Morte ao imperialismo japonês!”.
Em junho de 1964, o governo reacionário declara a Lei marcial e o Comando de Forças Combinadas dos Estados Unidos autoriza o deslocamento de duas divisões de combates para reprimir os protestos. Nessa mesma época, o governo fantoche aprova o envio de soldados sul-coreanos para lutar ao lado dos invasores ianques na Guerra do Vietnã. Chun Doo Hwan, que viria a ser uma figura central na supressão do Levante Popular de Gwangju, cumprira a função de comandante de uma divisão do exército fantoche sul-coreano no Vietnã. A participação no conflito do Vietnã foi também uma oportunidade para que os reacionários sul-coreanos lucrassem às custas dos sofrimentos e massacres do povo vietnamita. Empresas sul-coreanas de transportes de suprimentos, construção civil e entretenimento obtiveram gigantescos lucros durante esse período.
Para aprofundar a sua dominação reacionária sob o regime político fantoche da Coreia do Sul, Pak Chung-hee promove em outubro de 1972 um autogolpe, dissolvendo a Assembleia Nacional e elaborando uma nova constituição, que seria conhecida como “Constituição Yushin”. A constituição de Yushin representa um fechamento ainda maior de um regime que já era brutalmente ditatorial e fascista. A “nova era”, fortemente inspirada no período da Restauração Meiji no Japão, alçaria os níveis de exploração da classe operária sul-coreana a níveis alarmantes.
Na época em que serviu ao exército imperial japonês, Pak Chung Hee recebeu bastante influência ideológica que formaria sua visão de mundo em prol de um modelo de organização social fortemente baseados na hierarquia, forte controle estatal, nacionalismo e anticomunismo. A partir desse período, os chaebols começam a despontar como a coluna vertebral da economia sul-coreana, o que garantiu que o setor mais significativo dos capitalistas sul-coreanos apoiasse decididamente o regime.
Contra a intensificação da exploração capitalista, os operários foram buscando formas de se organizar e lutar pelos seus direitos. Denunciando as extenuantes jornadas de trabalho a que eram submetidos – oficialmente a legislação laboral previa 8 horas de diário de trabalho, algo quase nunca respeitado –, os trabalhadores começaram a enviar cartas para os mais diversos órgãos governamentais. Suas demandas eram recebidas com desprezo ou repressão pura e simples. Em 1970 – dois anos antes da instauração do regime ditatorial de Yushin – Chun Tae Il, jovem ativista operário, cometeria suicídio ateando fogo ao próprio corpo, visando chamar atenção para o problema da violação dos direitos trabalhistas na Coreia do Sul. A KCIA exercia um rígido controle contra a atividade sindical no país, permitindo apenas o funcionamento da central sindical alinhada ao regime.
Em 1974, o governo anuncia haver derrotado uma suposta conspiração conjunta com a Coreia do Norte para a derrubada do governo, organizado por um fictício “Partido Revolucionário Popular”. Seguindo esse episódio, milhares de pessoas foram presas e torturadas pelo regime. O governo organizou um julgamento farsesco de oito líderes, que supostamente pertenciam a este grupo, e que seriam posteriormente executados em 1975. Posteriormente, ficaria provado que esse episódio foi uma farsa montada pelo regime reacionário.
O número de protestos e revoltas contra o governo cresciam na medida em que este ia tomando formas mais reacionárias e repressivas. Entre setores importantes da pequena-burguesia urbana, crescia o descontentamento contra o regime.
Dada a repressão sistemática e aniquilação da oposição comunista revolucionária, novas ideologias e movimentos passam a dirigir as lutas de oposição contra o regime. Esses movimentos refletiam as aspirações de um setor da média burguesia e da pequena-burguesia, excluídas de representatividade dentro do regime pró-imperialista. Já fortemente influenciadas por ideias burguesas ocidentais e distantes do socialismo e comunismo, tal grupo buscou mais voz e participação política. Ao mesmo tempo, inúmeras organizações de trabalhadores, estudantes e mulheres seriam formadas em território sul-coreano.
No ano de 1979, novos protestos massivos voltam a sacudir a Coreia do Sul. Uma nova crise se abre no seio do regime, e Pak Chung Hee seria assassinado por um membro da KCIA. Hoje em dia, muitos economistas e sociólogos burgueses consideram o regime reacionário e anti-povo de Pak Chung Hee como responsável pelo “milagre econômico” da Coreia do Sul, e as políticas implementadas nesse período são apresentadas como “modelo” para países em desenvolvimento. Nesta época, Pak Chung Hee chegou ao poder falando em “autossuficiência econômica” e aprofundou a implementação de um programa de substituição de importações.
Pouco tempos após o assassinato de Pak Chung Hee, Chun Doo Hwan, elemento reacionário, conduz mais um golpe de Estado e dá origem a um novo regime militar na Coreia do Sul. Em 1980, seria já o chefão fascista sul-coreano, responsável principal pelos crimes contra a humanidade cometidos na cidade de Gwangju durante o mesmo ano.
O Levante Popular de Gwangju
Conforme falamos, a presente data de 18 de maio de 2020 marca o 40° aniversário do Levante de Gwangju. Este importante evento marcou o início da crise da ditadura militar patrocinada pelo imperialismo norte-americano, exercendo uma poderosa influência na luta das massas populares sul-coreanas. O Levante foi brutalmente reprimido pelo exército sul-coreano, deixando profundas marcas na sociedade sul-coreana. O grau de combatividade demonstrado pela classe operária e os estudantes da cidade é de grande inspiração não somente para os movimentos democráticos e progressistas da Ásia, mas também noutras partes do mundo.
A origem do Levante Popular de Gwangju remonta às manifestações massivas de estudantes, que começaram em Seul, 14 de maio de 1980, e logo se expandiram para outras regiões da Coreia do Sul, como Busan e Gwangju. Os estudantes protestavam contra a ditadura militar, reivindicavam a democratização da sociedade sul-coreana e o fim da Lei marcial. Campi universitários em todo o país foram ocupados. Sentindo as pressões do governo e preocupados com as consequências das manifestações, as lideranças estudantis cancelaram novos atos de rua. O governo não voltou atrás em suas oposições e enviou o exército para várias regiões do país, incluindo Gwangju, onde os estudantes haviam ocupado a Universidade Nacional de Cheonam. Em 16 de maio, os estudantes em Gwangju realizaram manifestações em frente ao Palácio Provincial, que foi renomeado como “Praça da Democracia” e saíram num desfile de tochas.
Em 17 de maio, muitos líderes do movimento em Gwangju foram presos, na medida em que o exército já havia deslocado sua inteligência para atuar na cidade. Em âmbito nacional, várias lideranças políticas foram presas. Autorizado por Washington, o general John Wickman havia liberado a utilização de forças paraquedistas, que foram deslocadas, por ordens de Chun Doo Hwan, para Gwangju. Ao chegarem em Gwangju, as tropas aterrorizaram e humilharam a população da cidade.
Em 18 de maio, reagindo às violações e repressão de que foram vítimas, os protestos em Gwangju adquirem um caráter mais radicalizado e evoluem para confrontos abertos contra o exército. Os estudantes começaram a utilizar amplamente coquetéis molotov, organizando equipes responsáveis para sua produção e arremessos durante os protestos. Pessoas dos mais variados estratos sociais começam a se juntar espontaneamente às demonstrações. Quando o proletariado entrou em cena, os militares voltaram a reagir com violência, atirando indiscriminadamente nas pessoas que participavam dos protestos. Os motoristas de ônibus e táxi também tomaram parte no movimento, usando seus veículos como escudos de proteção dos manifestantes, na medida em que pilhas de corpos iam se formando nas ruas e o resgate das pessoas era quase impossível, devido aos tiros frenéticos disparados pelos militares. As pessoas reagiam com o que tinham a seu alcance: pedras, bastões de beisebol, barras de ferro, bambu, etc. Em 19 de maio, os militares começaram a usar lança-chamas contra os manifestantes, incinerando dezenas de pessoas.
Em 20 de maio, é encontrado um corpo mutilado, o que contribuiu para enfurecer ainda mais a população de Gwangju. Milhares de pessoas se reúnem no centro da cidade e entoam a canção “Nosso desejo é a reunificação”. A marcha dos manifestantes reuniu cerca de duzentas mil pessoas e novamente foram recebidas com repressão indiscriminada. Num determinado momento, os manifestantes formaram grupos de ação que tomaram as instalações da Guarda Nacional, e vários presos foram libertados. A repressão prosseguia violentamente.
Em 21 de maio, a luta se intensifica com a entrada dos operários da fábrica Asia Motors. Muitos moradores de Gwangju se aproximaram da fábrica para pedir que os operários se engajassem na luta. Os trabalhadores da fábrica aceitaram o pedido, pararam a produção e forneceram vários veículos para os manifestantes. Cerca de 414 veículos militares foram doados para os manifestantes. Em seguida, uma coluna de operários, dirigindo os próprios veículos que haviam produzido, chega em Gwangju para participar do levante. Num determinado momento, os manifestantes formaram grupos de ação que tomaram as instalações da Guarda Nacional e vários presos foram libertados. Trabalhadores fabris, pescadores e mineiros de localidades próximas de Gwangju também se dirigiram à cidade, trazendo com eles armas e munições.
As milícias populares – chamadas de “Exército Civil” – tomaram conta da cidade, expulsando os militares, desempenhando um papel de “liderança” do levante. Com os militares fora da cidade, Gwangju se converteu numa espécie de “comuna”, com o surgimento de formas bastante embrionárias de novas relações sociais. O espírito de solidariedade que se criou na sociedade durante os dias do levante é algo bastante comentado e analisado em estudos sobre os acontecimentos em Gwangju. Kim Il Sung, então presidente da República Popular Democrática da Coreia (Coreia do Norte), chegou a afirmar que o Levante Popular de Gwangju “foi a primeira sublevação massiva do mundo depois da Comuna de Paris”. [4]
Precisamos ressaltar que o Levante Popular de Gwangju, apesar de ter sido classificado pelos militares sul-coreanos como uma “rebelião armada comunista organizada pela Coreia do Norte”, teve na espontaneidade uma de suas marcas principais. Como sempre, a bandeira do anticomunismo foi utilizada para justificar o massacre e os ataques contra as massas populares.
No dia 27 de maio, o governo desloca as tropas especiais que ficam estacionadas na Zona Desmilitarizada da Coreia (fronteira com a RPDC) para ocupar a cidade de Gwangju e esmagar militarmente a resistência armada das milícias populares formadas pelos estudantes e operários.
Envolvimento do imperialismo norte-americano no Massacre de Gwangju
O deslocamento de tropas para a cidade de Gwangju contou com a aprovação do general John Wickman, então comandante das Forças de Comando Combinadas da República da Coreia e Estados Unidos. Os politiqueiros e ideólogos do imperialismo norte-americano davam declarações públicas “condenando” qualquer violação dos direitos dos manifestantes, ao mesmo tempo em que, por debaixo dos panos, conspiravam e davam autorizações ao regime militar reacionário. A gigantesca maior parte do armamento, munição e veículos utilizados na repressão contra o povo da cidade foram fornecidos ao Estado fantoche sul-coreano pelo imperialismo norte-americano. A repressão ao Levante Popular também contou com aval de Jimmy Carter, então Presidente dos Estados Unidos, Zbigniew Brzezinski, Conselheiro de Segurança Nacional e Richard Holbrooke, Secretário de Estado Adjunto. A grande preocupação dos ideólogos do imperialismo era o de manter a “estabilidade” do regime fascista e, como não poderia deixar de ser, combater o fantasma do comunismo. Jimmy Carter, durante sua campanha eleitoral, chegou a defender a ideia de retirar as tropas norte-americana estacionadas na península coreana, mas passou à história como um personagem que colaborou com um dos episódios mais sangrentos cometidos pelo regime sul-coreano e o imperialismo.
Por que foi derrotada a resistência em Gwangju?
Como falamos anteriormente, o Presidente Kim Il Sung chegou a comparar o Levante Popular de Gwangju com a Comuna de Paris. De fato, existem várias semelhanças entre os dois acontecimentos. Os dois surgiram como insurreições armadas urbanas, que estabeleceram mecanismos novos de participação popular e desbarataram os mecanismos e forças repressivas do Estado burguês. Apesar de no caso da Comuna de Paris o caráter operário ser muito mais enfático, também em Gwangju os protestos contaram com participação essencial dos trabalhadores, que inclusive introduziram uma dinâmica mais combativa e radicalizada ao movimento.
As diferenças residem no fato de, politicamente, o movimento em Gwangju ser muito mais “confuso” e espontâneo do que a Comuna de Paris. Um participante do movimento em Gwangju chegou a afirmar que muitos participantes do Levante Popular tinham a ingênua esperança de que os Estados Unidos viriam salvar os estudantes, o que demonstra uma certa incompreensão da dinâmica política internacional e da própria situação em que estavam inseridos. Outro fato que diferencia Gwangju da Comuna de Paris é o fato de a primeira ter tido uma duração ainda mais incipiente que a segunda. O Levante Popular de Gwangju durou apenas dez dias, e apesar de ter instituído um comitê civil que começou a deliberar sobre os assuntos políticos da cidade, desbaratado os aparatos repressivos do Estado burguês em prol de uma nova estrutura militar surgida do povo, ainda não poderia ser considerado um novo poder na correta acepção do termo, dado o caráter bastante embrionário dessas novas formas organizativas. Os acontecimentos em Gwangju revelam, uma vez mais, que sem um movimento cujo núcleo principal seja a classe operária, e que além disso, esteja armado de uma ideologia orientadora correta, vitórias maiores são insustentáveis. Contudo, não podemos negar a importância histórica do Levante Popular de Gwangju e da experiência histórica das massas populares sul-coreanas. O Levante Popular de Gwangju mostrou que as forças do inimigo podem sim ser enfrentadas com decisão. O Levante também desnudou o verdadeiro caráter do regime militar reacionário e do imperialismo norte-americano. O exemplo dos milhares de combatentes que tombaram lutando contra a opressão reacionária serviu de impulso para a derrubada da ditadura militar fascista em 1987.
Notas
[1] Anna Louise Strong. In North Korea: First-Eye Report. Soviet Russia Today, New York: 1949
[2] Bruce Cummings. The Korean War – A History. The Modern Library, New York: 2011
[3] George Katsiafikas. Asia’s Unknown Uprisings – Volume I: South Korean Social Movements in the 20th Century. PM Press, Oakland: 2012
[4] Kim Il Sung. Selected Works – Volume 35. Foreign Language Press, Pyongyang: 1989
Fonte: NOVACULTURA.info