sábado, 24 de dezembro de 2011

Sobre o texto "Em Palácio, jovem Kim" de Pepe Escobar


Por André Ortega - editor do blog Solidariedade à Coreia Popular

Pepe Escobar. Extravagante, polêmico, espetacular; o inimigo da mídia corporativa, alternativa que escreve para Hamad bin Khalifa Al-Thami, ou melhor dizendo, para a Al Jazeera. Seus textos, repletos de poesia e ar irreverente, sempre tem um tom artístico, ou melhor dizendo, "enrolação artistica". Imagino que as exigências de um grande rede o levem a preencher textos com esses "recursos poéticos" que muitas vezes chegam ser parnasianos de tão prosaicos, de tão descomprometidos e limitados a estética - temos aqui um bardo no reino do Catar. Imagino também que essa exigência profissional faça leve-o a escrever sobre uma quimera como a Coreia do Norte, tema tão fácil de explorar. Aqui, a semelhança das vozes da imprensa corporativa, o escriba do rei abusa da mistificação e seus "recursos poéticos" passam a assumir conteúdo ideológico. No texto "Em palácio, o jovem Kim", Escobar abusa da logomaquia e se estende em belas ironias que, sem conteúdo, só dizem uma coisa: que o nosso bardo quer se unir ao coro de difamação da RPDC promovido pela grande mídia imperialista, talvez como tenor mais destacado à esquerda do coral, porém cantando a mesma música.

O texto inicia com uma declaração socrática:

"Ninguém sabe o que se passa hoje na República Popular Democrática da Coreia, além da continuada catarata de lágrimas – impostas pelo sistema, ou sinceras. A única certeza é que o terceiro filho do Querido Líder Kim Jong-il – o jovem Kim Jong-un, formado na Suíça – perpetuará a dinastia que governa a Coreia do Norte."

O autor reconhece sua total ignorância mas logo depois já nos presenteia com duas certezas: de que existe uma dinastia e que Kim Jong-un vai perpetua-la. Qualquer um que vá contra isso pelo visto vai contra "a verdade absoluta" - aliás, ele parece sustentar aqui e ao longo do texto um certo desprezo por dinastias, o que é estranho vindo de um empregado de uma. Logo depois já inicia por ironizar o papel da liderança no regime norte-coreano, e não hesita na hora de ridicularizar com factóides dignos de Forbes ao invés de ir direto ao que quer dizer(que analistas ocidentais se questionam etc):

"O penteado esquisito do Querido Líder, os sapatos de plataforma, a exótica coleção de carros, a fascinação por Hollywood são itens do folclore pop(...)"

Depois de um pouco mais de firula, Escobar prevê:

"Em primeiro lugar, que ninguém espere uma ‘primavera norte-coreana’. Assim como as massas sofrem como se vivessem em tempos medievais, e assim como alguns sonham com um comunismo que realmente beneficie os mais pobres, assim não acontecerá ‘primavera norte-coreana’ alguma, porque os militares norte-coreanos não permitirão que aconteça."

Escobar, antes ignorante declarado, nos presenteia com mais uma certeza, esta que faço questão de questionar diretamente já que possue um forte cerne ideológico. Grandes centros de estudo, a educação, a infraestrutura pública - tudo isso é desconsiderado para se dizer que "as massas sofrem como se vivessem em 'tempos medievais'". Nosso analista tem certeza que existem condições para uma "Primavera Norte-Coreana", afinal isso é tão óbvio quanto a Imaculada Conceição - tal Primavera só não ocorre, claro, porque é tão óbvio quanto que "os militares"(uma força aparentemente apartada das condições objetivas) não vão deixar que isso aconteça(Pepe Escobar pelo jeito acredita nos poderes sobrenaturais do regime, que magicamente detém a força da história). O autor aproveita e nos presenteia com mais "verdades" aleatórias, como a de que o "comunismo norte-coreano"(abstração metafisica) não benificia os pobres(tirando os palácios de estudo do povo, os palácios desportivos, as escolas, a extinção do analfabetismo, o racionamento contra a fome, etc etc...).

"O Querido Líder escolheu o jovem Kim, preterindo seus dois irmãos mais velhos. Durante algum tempo, o favorito foi Kim Jong-nam, ex-playboy internacional, hoje residente em Macau. Mas Kim Jong-il nunca engoliu aquela queda pela vida loca."

Mais e mais certezas - Escobar conhece bem a vida pessoal dos Kim(uma pena que não saiba tanto assim da vida de seus empregadores)! O interessante é que a certeza inicial do texto, assim como a fundamental deste parágrafo(a de que Kim Jong-il escolheu Kim Jong-un, de que ele é sucessor certo), vai entrar em contradição com os esforços posteriores de avaliar a conjuntura norte-coreana, os jogos de poder, etc - a frente Escobar praticamente reconhece que a questão é muito mais complicada, não se tratando de uma natural linha de sucessão dinástica.

"Detalhe crucialmente importante, Kim Jong-un é general de quatro estrelas nomeado pelo Querido Líder. Na prática, nada significa: o nomeado não tem qualquer experiência militar, embora se diga que é especialista em artes e artimanhas da tecnologia de informação. Os generais que realmente contam na Coreia do Norte são revolucionários da velha guarda mais hardcore, já chegados aos 80 anos."

Antes de converterem a vontade de potência em ressentimento pela força alheia, levem em conta que a tal nomeação não constitui uma extravagância despótica e sim uma nomeação dentro dos poderes estabelecidos pela Constituição para a Comissão Nacional de Defesa. "Na prática" a posição de Kim Jong-un significa muita coisa: significa ter exércitos sob seu comando, algo bem longe de "nada", algo que realmente conta. Seria interessante que antes ele pensasse na trajetória "política" de seu chefe, que foi indicado a Comandante-em-Chefe das Forças Armas e desempenhou um papel importante na modernização das mesmas - ou ele poderia fazer uma de suas ironias, uma piadinha, um "assim como o manda-chuva do Catar", alguma coisa mais digna dele(porém arriscada demais para um bobo da corte).

"Como em tudo que tenha a ver com a dinastia Kim, os sobretons shakespeareanos são fascinantes. O jovem Kim terá de lidar com a poderosa esposa do Querido Líder, Kim Ok; com a mais complexa de suas tias, Kim Kyung-hui; e
com o marido dela, Jang Song-thaek, também corrupto."

Arenga poética para os inimigos do regime de Pyongyang. Escobar é estiloso e subversivo, não faz como a grande mídia que busca forjar evidências para suas afirmações - ele simplesmente afirma. Jang Song-thaek, "também corrupto", porque eu não sei, mas que ele, é! "Yo no credo en brujas, pero que las hay, las hay!" , parece nos declamar o autor ao longo de seu artigo.

"Jang é um dos apenas quatro vice-presidentes da Comissão de Defesa Nacional, o mais santificado dos santificados corpos da Coreia do Norte. O ex-presidente era – fácil adivinhar – o próprio Querido Líder em pessoa. Especialistas internacionais em Kimologia devem estar agora afiando seus microscópios, tentando adivinhar se o jovem Kim será ou o tubarão ou a sardinha, agora que terá de nadar sozinho por aquelas águas onde nadam, além da família, um bando de generais inconversáveis e o tio Jang, uma espécie de Darth Vader da Coreia do Norte. O que já é certo, sem sombra de qualquer dúvida, é que, para todas as finalidades práticas, haverá uma espécie de junta militar que regerá o show, por trás do jovem Kim. "

Escobar dá um tom de impressionante nisso. Porém não há nada de especial ai. A Constituição, republicana e efetiva(não absolutista e "provisória" de mais de 40 anos) reconhece este órgão, a Comissão Nacional de Defesa(que faz parte de um triunvirato executivo), é o mais importante do país, a mais alta instância. Não há revelação alguma aqui, conluio, camarilha, seja lá o que for. Os analistas ocidentais apresentam os membros da comissão como "manobristas" por trás poder, quando todo norte-coreano sabe que todo membro da comissão é extremamente importante e extremamente poderoso, fundamental peça do governo. Seria mais inteligente, por exempo, pensar no papel de um Kim Ki Nam, chefe do secretariado do Partido, em tal ocasião.

A seguir reconheço que o jornalista a soldo do Sheik é um pouco - um pouco - mais conciso, mais conteúdo menos forma. Até que eles no presenteia com mais uma pérola de sabedoria:

"Mas há também a desagradável questão econômica. A economia no norte muito teria a ganhar com um choque à Deng Xiaoping – um “socialismo com características coreanas”. Mas a dinastia Kim e o aparelho militarizado que a cerca tendem a preocupar-se, sobretudo, com as reverberações políticas e sociais de excesso de liberdade econômica."

Escobar não sabe do que está falando. O trocadilho que nosso bardo faz diz muito: socialismo com caracteristicas nacionais é socialismo feito sob condições nacionais. Reverberações políticas foram muito bem controladas pelos chineses, porque o "totalitarismo norte-coreano", capaz de impedir a tão eminente "Primavera Coreana"(segundo Escobar) seria incapaz? Os coreanos já consideraram as próprias reformas, possuem suas próprias ZEEs, isso para não falar de um amplo mercado que nasce desde os anos '90(que caminha entre os limites da legalidade - fora os mercados camponeses, "eternos" desde a fundação) e não causa problemas puramente políticos(tem a corrupção). Uma maior abertura demanda a condição sine qua non de fim do estado de guerra(e condiciona não só o comportamento político, como o próprio Escobar afirma, como o comportamento econômico) e retirada das tropas americanas. Uma "entente" com os EUA foi importante para as reformas chinesas... Agora, porque os ianques pensariam em apoiar qualquer reformismo ou um projeto de reintegração da península(que existe e pressupõe uma economia mais mista etc) se eles podem endossar uma política de agressividade, de anexação do norte pelo sul e ter duas Coreias a seu dispor(e não uma nova China)? Os norte-americanos não querem um novo "coquetel chinês" e sim um tesouro nacional para poder saquear como fizeram em 1998 na Coreia do Sul.

Sem mais comentários, creio que a pérola de Escobar teve uma utilidade: ótima fonte para rebatermos os clichês e vermos até onde vai "a esquerda que a direita gosta". O resto é só um solo no meio de coro anti-RPDC, onde todos tem que cantar os mesmos dogmas de sempre sem as mesmas provas de sempre - afinal, quem sofreu lavagem cerebral? Não quero terminar com essa pergunta retórica a estilo Pepe Escobar, quero perguntar algo mais concreto: qual é a posição do patrão da Al Jazeera e Sheik do Catar em relação a República Popular Democrática da Coreia mesmo?