quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

A Arte Musical na Coreia do Norte - PARTE I






Por André Ortega 
“Onde há vida há música, e vice-versa. A música é a arte mais intimamente vinculada a vida humana; desperta no homem ardente entusiasmo pela vida, aprofunda seus sentimentos, aumenta seu ardor e infunde-lhe otimismo e esperança no amanhã.”

KIM, Jong Il. “Arte Musical” , 17 de julho de 1991. Kim Jong Il – OBRAS ESCOGIDAS,Tomo XI Ediciones en Lenguas Estranjeras, Pyongyang , Coreia, 2006. Pg. 374

A Coreia do Norte, República Popular Democrática da Coreia (RPDC), é um mistério para a maioria das pessoas. Tudo para esdrúxulo, desde o sistema político até a cultura, sem esquecer das pessoas (esse povo estranho!), claro. A grande mídia, no geral, não colabora para desvendar a nuvem de fumaça acusando esse país de ser “fechado”  e ao mesmo tempo repete as acusações dos inimigos da RPDC. Se em relação ao geral é assim, o que dizer da música então? Ritmos provenientes da música pop norte-americana (e mais recentemente sul-coreana) são muito familiares para as pessoas, porém não é raro (se há contato) estranharem a música norte-coreana (o que é natural). Muitos reduzem a mesma a alcunha de “música totalitária” ou pensam que ela se resume a marchas militares.

Fato é que, apesar das barreiras, muita gente tem se interessado pela música norte-coreana em específico e pela RPDC no geral. Nessa série de artigos buscarei satisfazer a curiosidade de muitos, falarei sobre o conceito da música coreana, sobre seu desenvolvimento, sua produção e sobre minha “experiência pessoal” (opinião) com a mesma. Eu, que já estive duas vezes na RPDC (durante dez dias, nas duas vezes), tive bastante contato com a música coreana, além de ter acesso a uma ampla literatura a respeito e material musical propriamente dito.  A principal obra de referência utilizada, pelo menos a princípio, será  “Arte Musical”, de Kim Jong Il, publicada em 17 de julho de 1991 e presente no Tomo 11 das Obras Escolhidas de Kim Jong Il (versão em espanhol, Ediciones en Lenguas Estranjeras, Pyongyang , Coreia, 2006). A obra é bem sintética e é razoável considerar a posição de Kim Jong Il dado sua liderança espiritual e presença na direção do Partido do Trabalho da Coreia,  cujo papel em relação a música será esclarecido através da série.

Falar da música norte-coreana, além de ter um valor artístico, tem antes de tudo um significado político, sendo uma via para se conhecer melhor o regime coreano. Esta série servirá tanto aos interessados na arte musical quanto aqueles interessados em política e no regime coreano.

PARTE I – O QUE É A MÚSICA?
Para falarmos da música coreana devemos começar com as definições. O que é a música? Para que ela serve, qual sua missão, seu caráter, seus fins? É preciso antes de tudo assimilar a concepção musical norte-coreana.

“Para impulsionar atividades criadoras, o homem necessita, por natureza, capacidade ideológica e espiritual e um fator que o satisfaça no plano estético e emotivo. A arte é um poderoso meio para cobrir esta necessidade. (...)A música é um gênero artístico que manifesta as ideias e os sentimentos de maneira a exteriorizar, por um impulso interior, o que se sente. A arte e a literatura expressam as ideias  e os sentimentos do homem. No entanto, a música em características peculiares que a diferencia no modo da representação.  É uma arte especial que com sons musicais expressa os sentimentos e emoções que o ser humano experimenta. Principalmente, mostra as experiências emotivas que adquire na realidade, os sentimentos estéticos que se originam dos impactos psicológicos.  Mesmo que não se possa explicar diretamente em detalhe como a literatura o que quer expressar, nem reproduzir como a pintura a realidade que se estende ante a vista, manifesta o mundo psicológico e emotivo do homem de um modo mais refinado e profundo que qualquer outra arte.” (IBID. pg. 376-77)

Kim Jong Il, como bom marxista, enfatiza a natureza social da arte. A música deve ser, então, fiel ao que seriam as exigências de sua época, sendo esse processo de reflexão da realidade social seu conteúdo principal. Explica:
“O homem, em virtude seu atributo de independência, adota um critério e uma atitude sobre a situação real em que se encontra, manifestando contento ou descontento. “ (IBID. pg. 376)

Creio que não é razoável reduzir a criatividade humana, a potência de um cérebro individual, à condições históricas, a regimes sociais e relações de produção. Porém é forçoso admitir que, sendo a realidade na qual o homem está inserido, esses fatores interferem consideravelmente em sua concepção de mundo e no processo criativo. De qualquer forma, essa é a premissa principal da música norte-coreana.

Sendo assim, existe uma música adequada para cada época. E a época atual na Coreia, de construção do socialismo, é a “época do Juche”. Resumidamente, a Ideia Juche diz que o homem é um ser social dotado de criatividade e independência, “dono de tudo e decide tudo”, existindo uma “independência em si” (o homem enquanto ser consciente, por si só) e a “independência para si”(a luta política pela emancipação). Politicamente, por “homem” entende-se massas populares, e o socialismo jucheano (que é, sim, de matriz marxista) se resumiria na fórmula “as massas populares são donas de tudo e decidem tudo”.  Juche significa "independência".

Se a época é jucheana a música deve ser, portanto,  jucheana.  Essa idéia de “dever ser” é o principal para compreender a música norte-coreana, por isso eu dividi as principais características da música jucheana em diferentes tópicos que serão tratados individualmente nos próximos artigos. Poderei abordar cada uma das características mais profundamente e não estender demasiado em um único texto.  No próximo artigo será abordado o conteúdo político da “música jucheana” e as questões polêmicas em torno disso (totalitarismo, ditadura, liberdade de criação, etc). Dúvidas e sugestões a respeito serão bem vindas.